Com abóbora, bolo une à mesa herdeiros de avó que veio da Bulgária em 1926
Se viva estivesse, dona Ivana veria que o bolo de abóbora trazido da terra natal une todos os Bakargy ou Bacarji ao redor da mesa. Ao lado do marido Nikifor e de três filhos, Ivana veio da Bulgária e desembarcou no Brasil em 1926, com todos os outros imigrantes que aceitaram ofertas de trabalho aqui.
A receita de família veio na bagagem e é o que hoje dá sabor à saudade sentida. Quem aprendeu com ela e repassou às filhas, netas e sobrinhas, foi a nora, dona Erizontina. A sintonia entre as duas era tamanha que elas conversavam cada uma em sua língua. Ivana dizia em búlgaro e Erizontina respondia em português.
"Como se chama? Tik, tik... Espera, ela é a que fala melhor", avisa dona Erizontina Antunes Bakargy. A receita é simples perto do nome: "tikvika", que lido por quem sabe falar, não tem exatamente o som de todas as letras escritas.
"A língua búlgara eu aprendi com a minha sogra, mas eu não falo. Eu só entendia. Morei nove anos com ela", conta a senhorinha hoje com 77 anos. Como o marido, Pedro, era o filho caçula do casal búlgaro, os costumes pregavam que era obrigação do mais novo cuidar dos pais. E foi assim que a receita foi passada à nora.
"É um bolo que vai nele abóbora, o recheio é de doce de abóbora. Aí faz a massa que é quase uma massa de pastel, coloca o recheio, óleo, açúcar e põe para assar. Dá também para fazer salgadinho, de queijo, que ela também fazia", explica Erizontina.
Parte das sobrinhas, netas de Ivana, já sabiam fazer, mas foi quando uma delas, Edna, pediu para aprender que o fazer a receita passou a reunir toda a família. "Eu brinco que faz 10 anos que eu estou aprendendo. Mas eu já aprendi, acho que já aprendi", ri a advogada Edna Bacarji, de 52 anos.
Na última década ela aprendeu a fazer a receita assim, em família, com tias e primas reunidas abrindo a massa no rolo e recheando com abóbora. "Eu quis aprender por causa da cultura da família, para continuar. Meu avô e minha avó que faziam e eu comia quando criança, só não sabia fazer", explica Edna.
O doce de abóbora é feito com antecedência e ocupa duas vasilhas. É que cada filha e sobrinha se reúne ao redor de uma massa, para abri-la e então rechear. No forno, a família acredita que vão uns 40 minutos, é que por fazerem de olho, ninguém nunca mediu nem o tempo. "Depende do forno, até ficar torradinho as pontinhas para deixar a massa crocante", detalha Erizontina.
E antes mesmo do sabor chegar ao paladar, as lágrimas já despertam no rosto de quem sente saudade de ter a receita feita pela dona, Ivana. "O que lembra? A gente lembra a família toda, dela, do meu esposo. É ruim, mas a gente lembra..." chora a senhorinha.
Se a receita é segredo de família? A filha mais velha de Erizontina, Jucélia, brinca que não. "Quer anotar? Trigo, ovos, óleo...", diz.
O bolo não tinha data e nem ocasião para ser feito. Se comia de lanche à tarde, acompanhado de café. "Também acho que ia muito do período, de quando tinha abóbora na fazenda", acredita Jucélia Bakargy. Como Ivana e Nikifor moravam num sítio em Terenos, dependiam da colheita para preparar o doce.
Paralelo às plantações de grãos, seu Nikifor também trabalhou no início do encanamento da cidade de Campo Grande. "Ele ajudou a fazer a valeta da Rua 14 e a por encanamento. Era tudo novo", recorda a nora Erizontina.
A história da família é narrada além do modo de fazer e dos ingredientes do tikvika. Os Bakargy ganharam capítulos nas duas edições do livro Imigração no Brasil - Búlgaros e Gagaúzos Bessarabianos.
Neta de Ivana e filha de Erizontina, Jucélia Bakargy, descreve entre lágrimas o que é a receita. "É uma tradição que estamos tentando manter viva. Eu comecei com isso, de reunir os parentes, porque vão todos se espalhando e você não consegue mais juntar. Eu perdi de fazer muitas coisas, eu tinha 16 anos quando ela faleceu e sinto que deveria ter aprendido mais, mas naquela época você não pensa nessas coisas, só depois que cresce", desabafa.
Com a missão de continuar a receita e levar adiante, dona Erizontina compara seu modo de fazer ao da sogra. "Ela não tinha esse costume de reunir a família para fazer, fazia porque todo mundo gostava. Agora que começou essa reunião", exemplifica.
Uma das últimas da família a aprender, foi a neta de Erizontina, Lara Morais Nogueira. A mãe dela já sabia e como ela deixaria de aprender? "Fiquei muito feliz de aprender, porque a minha avó é apaixonada no bolo e eu pretendo ensinar para a minha filha Alice, tentar levar a tradição", diz Lara.
Comedora do bolo desde criança, o mais legal hoje não é tanto o gosto e sim o preparo. "Mario Sérgio Cortella falava da pamonhalização. Nunca esqueci que é importante e que está se perdendo com o tempo, que é aquilo de você se sentar e cascar o milho em família, preparar tudo e conversar. Essa comunhão é o que vale à pena e no fim, vem a delícia", completa.
Antes de provar, veio o alerta da caçula de Erizontina, Araci Bakargy, de que a gente poderia não gostar, mesmo depois de tanta propaganda. "É que pra gente tem um simbolismo: cada vez que você come, vem a lembrança da infância, da avó", explica.
O gosto é tão bom quanto a história que há por trás. E ano que vem, a família planeja uma viagem para a Bulgária, para fazer o doce lá, em conjunto com os familiares que ainda moram no País.