Depois de 53 anos, amor partiu e viúva resolveu vender Bolicho Seco
O restaurante é um dos mais tradicionais pelas estradas de MS, com pão fresco que vai à mesa na hora do almoço
Posso dizer que um pãozinho com manteiga foi uma das receitas mais saborosas que eu comi na vida. Não só pelos ingredientes, mas como pelo afeto. Isso ainda na década de 90, com aproximadamente 6 anos de idade. O endereço dessa “iguaria”? A rodovia BR-060, que dá acesso a Sidrolândia e diversos municípios de Mato Grosso do Sul, mas o ponto exato dessa saudade fica no KM 399, chamado Bolicho Seco.
Mais de duas décadas depois, resolvi visitar o endereço que me marcou na infância pela comidinha caseira, o pãozinho feito no dia que era servido junto à comida, o ambiente rústico bem típico de beira de estrada e com panelas de ferro que minha mãe tem até hoje em um dos armários.
De tudo daquela época, só restou a comida caseira e o sorriso da proprietária Elizeth Pereira, que diz a idade em tom de humor: “Beirando os 70, minha filha”. Vaidosa, também pede para não fazer foto "da vó".
A estrutura já foi reformada, mas as grandes mesas redondas e as cadeiras de madeira continuam iguais. O famoso requeijão, pãozinho e o almoço servido diariamente também seguem intactos. Assim como uma de suas funcionárias, que trabalha ali há 40 anos.
Chegamos e o almoço já tinha acabado, infelizmente, mas Elizeth fez questão que experimentássemos o pão e manteiga caseiros, junto ao pastel de carne com ovo e cebolinha, imbatível. “Acredita que um menino que passava aqui quando tinha cinco anos e comia nosso salgado, hoje, é um homem formado e ainda vem aqui”, diz orgulhosa.
Também ofereceu um prato de macarrão feito naquele dia, mas o estômago cheio após almoço numa churrascaria não deu espaço para mais uma garfada. Que pena! Quem sabe outro dia.
Sentada, ela revela o tempo do Bolicho Seco, que resiste há 53 anos, herança que veio do falecido marido, Almir Pereira, que morreu “há pouco tempo”, diz sem querer entrar em detalhes sobre a despedida do grande amor.
À venda - A morte que separou o sorriso de Elizeth do carinho de Almir foi um dos motivos para ela colocar o ponto à venda, que ainda não tem preço definido.
O local, segundo a dona, também foi para o Portal de Turismo Federal, o que exige dela melhorias por ser o primeiro ponto de parada até Bonito, um dos destinos mais famosos do mundo.
Mas a verdade é que uma hora o cansaço bate à porta. Elizeth reforça que acredita que “tudo tem seu tempo”.
Sempre vivi aqui, foram anos felizes. Cinquenta e três anos são meio século. Mas não adianta, tudo tem um tempo útil de vida, eu estava olhando umas formas de alumínio hoje mesmo, está tudo furada e rasgada, coisas do tempo”, justifica.
Agora, o que ela sonha é com a praia. “Quero ir para Itapema ou comprar uma casa na beira da praia, se Deus quiser. E tem que ser logo”, pede.
Mas enquanto segue a negociação do ponto e dos 22 hectares pertencentes à família, vale muito acabar com a saudade do pãozinho caseiro e, principalmente, do requeijão que leva mais de 15 horas para ficar pronto e tem um sabor delicioso. “É a mesma receita há 53 anos. Falam que é patrimônio histórico”.
Já no almoço, tem arroz fresquinho, leitoa frita, frango caipira, macarronada caseira e saladinha. Na vitrine, os tradicionais salgados fritos, entre eles, o pastel de carne com ovo, carro-chefe para quem faz uma parada rápida, além de pedaços enormes de frango.
Dentro do estabelecimento, doces caseiros, como goiabada, doce de leite, rapadura e outros permanecem à venda. Nos armários, restam chapéus, algumas panelas e utensílios de ferro, mas de ferro mesmo, daquelas para vida toda. “Mas já não é do mesmo fornecedor que antes, aliás, estou com pouca coisa por conta da pandemia”.
Além da comida, os arredores são atração pela história. A cerca de 150 metros, é só seguir a trilha e você encontra o que restou da Estação Bolicho Seco. Elizeth diz que pegou muito trem ali com destino a Campo Grande, Ponta Porã, Bauru e Curitiba.
Ela também fala que, apesar do estado, é uma das estações mais bem conservadas da região, mesmo com a pessoa que comprou a propriedade ao lado usando o prédio como baia para cavalo.
O silêncio, cortado apenas pelo barulho dos pássaros e caminhões que passam na estrada, impera na estação ferroviária ainda com placas, bilheteria, área do telegrama, portas de madeira, piso avermelhado e os trilhos de ferro enferrujados, quase todos cobertos pelo mato. No mais, tudo parece esquecimento e parte da história se deteriorando.
Depois de ver detalhes do que ficou da estação, a dona lembra que ali perto ainda rolam alguns bailes, não com a frequência como antigamente, mas lotam quando acontecem. “Teve um em janeiro e certamente vai ter em junho”, diz.
Tímida, ela preferiu não ser fotografada, mas gentilmente nos ofereceu água da casa na despedida e fez o convite para outra visita enquanto o Bolicho Seco existir.
Fechando as portas, ela iria para Campo Grande. “Moro aqui, em Sidrolândia e Campo Grande. Depois que a gente perde o grande amor, fica igual cachorro que cai da mudança, pra lá e pra cá”, finaliza.
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