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Sabor

O sabor que vem da favela, quando se salga o almoço para comer na janta

Paula Maciulevicius | 08/07/2013 07:16
“Minha comida vai entrar para a história! Não sei que mistério que tem. Acho que é o amor”, diz toda risonha, a aposentada Eva. (Fotos: Marcos Ermínio)
“Minha comida vai entrar para a história! Não sei que mistério que tem. Acho que é o amor”, diz toda risonha, a aposentada Eva. (Fotos: Marcos Ermínio)

No cardápio: frango frito, ao molho, abobrinha, arroz, feijão e pucheiro. Na região: o cheiro de comida boa que sai das panelas é de alegrar a criançada que se prepara para ir à escola. A rotina das mulheres que cozinham esses pratos inclui mais do que o tempo à beira do fogo. Requer uma caminhada diária de 2 quilômetros até o supermercado do asfalto. É que para se ter comida das boas é preciso ir às compras todo dia porque não há refúgio que possa conservar o alimento de um dia para o outro.

Quando a energia não chegou em casa é no escuro que se cozinha noite e dia. A geladeira, nos barracos onde se faz presente, serve só de armário e para estocar a comida apta a ser servida pelo menos mais uma vez, a criatividade dessas mulheres é o tempero especial. Como tudo na vida de quem mora na Cidade de Deus, elas precisam fazer do impossível para por comida na mesa todo dia. Seja até salgar o alimento. E se não tem onde gelar, o jeito é comprar o fresco todo dia.
O sonho da aposentada Eva Arruda, de 66 anos, é ter uma casa, onde possa refrigerar a comida e não apenas estocá-la. “Quando eu mudar aí vou ter minha geladeira funcionando, se Deus quiser e ele quer”, manifesta a fé. É o mesmo sentimento que embala a senhorinha no fogão. Nas panelas: arroz, feijão, frango frito e outro ao molho, abobrinha e salada de batatinha. O verdadeiro banquete.

Para ela cozinhar a tempo dos netos irem para escola almoçados, ela precisa ir ao mercado todo dia até 9h da manhã. “Tem vários aqui perto e não é muito longe não. Tem que trazer só o que já é pra fazer”, relata. O ‘não muito longe’ é andar pelo menos um quilômetro de ida e outro de volta.

A rotina dela é ir ao mercado diariamente porque a função da geladeira não se aplica à favela no bairro Dom Antônio Barbosa. “É todo dia para não perder o gosto da comida e ter que jogar fora. Eu só enfio dentro da geladeira para mosca não entrar e faço só um pouquinho. Nos dias mais quentes, até assim tem que ver se não vai estragar”, diz.

Em uma das panelas, ela exibe um arroz soltinho. Daqueles que se é possível contar quantos grãos foram cozidos. De dar inveja a qualquer dona de casa. Ela não diz se é segredo ou não, mas o modo de fazer, que até então seguia as receitas tradicionais, leva água fria.

A criatividade aliou-se ao desespero para manter a comida fresca. Aparecida salga o almoço para o jantar.
A criatividade aliou-se ao desespero para manter a comida fresca. Aparecida salga o almoço para o jantar.
O pucheiro. Fora os tempos de 'vacas magras', mandioca e batata servem para engrossar o caldo.
O pucheiro. Fora os tempos de 'vacas magras', mandioca e batata servem para engrossar o caldo.

“Não ferve água. Eu frito alho, o arroz, do jeito que o povo faz. Não sei que mistério que tem. Acho que é o amor, fazer as coisas com amor, o segredo está ai”, diz toda risonha.

Ela insiste para que a equipe prove, pelo menos, a coxinha de frango frita. Foi como se fosse oferecer banana para macaco e o frango mais gostoso já deliciado. Sequinho e crocante, temperado apenas com sal e limão.

“Meu almoço vai ficar na história, mas quando eu tiver a minha casa vocês vão lá comer comigo”, convidou. O que dona Eva não sabia é que para o convite não é preciso dispor de casa.
Uma andada mais adiante e o cheiro que domina é do pucheiro no fogão à lenha improvisado de Aparecida. Ela ergue a pressão e o “tsiiiiii” dá um gosto ainda maior ao feijão.
Para acender o fogo ela usa graveto, lenha, papelão e até espuma de colchão. Itens que se acha facilmente no lixão. Relato dados por eles mesmos como se o lugar fosse a mercearia da esquina.

“Eu brinco que não sei nem mais ligar fogão automático”, diz Aparecida Tatiana Teles Gonzaga, de 26 anos.
A carcaça do fogão dá conta de servir duas famílias. No dia em que o Lado B visitou a região, ela disse que eram “só seis” que iam comer, mas que qualquer coisa a gente também estava servido.

O segredo da comida não está só no fogão à lenha. Para não estragar, Aparecida salga a mais no almoço e retempera no jantar. “Como é só para o dia, eu salgo também. Quando vou fazer à noite, eu lavo e tiro o sal, tempera tudo de novo e frita ou cozinha”, ensina.

Além da saga de por comida salgada à mesa e retemperar no jantar, ela caminha até o asfalto, considerado “meio longinho”.

O pucheiro, que estava um cheiro só, leva colorau, cebola, cebolinha e cheiro verde. “Ponho também batata e mandioca para engrossar o caldo, mas hoje está fraco”, disse. O fraco não é o caldo, é o bolso que não permitiu servir um pucheiro encorpado. O que não significou problema para a família que se denomina ‘Buscapé’.

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