Concessão para Rio Paraguai navegável 365 dias do ano é risco ao Pantanal
O bioma, que vive a enfrentar incêndios devastadores, pode ficar ainda mais seco
A possibilidade de se manter o Rio Paraguai, o principal do Pantanal, navegável os 365 dias do ano, prevista na consulta pública de concessão da hidrovia à iniciativa privada, atende à logística do lucro para a exportação, mas a dragagem de aprofundamento e derrocagem (retirada de rochas) vão alterar a hidrodinâmica do rio. Um dos riscos? A água da planície pantaneira escoar mais rápido.
RESUMO
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A concessão da hidrovia do Rio Paraguai à iniciativa privada, visando navegabilidade durante todo o ano, preocupa ambientalistas. A dragagem e derrocagem necessárias para aprofundar o leito do rio podem acelerar o escoamento da água, secando o Pantanal e reduzindo o habitat de diversas espécies. Embora a concessão se limite ao Tramo Sul e exclua o Tramo Norte, o aprofundamento do leito, mesmo que considerado de "baixa magnitude" no estudo de viabilidade, representa um risco significativo à hidrodinâmica do rio e à preservação do bioma. A alternativa de dragagens apenas de manutenção, sem aprofundamento, é defendida por pesquisadores como forma de conciliar a navegação com a conservação do Pantanal.
Ou seja, o Pantanal, que vive a enfrentar incêndios devastadores, pode ficar ainda mais seco. Lembrando que o sistema depende da descida bem lenta das águas. Em termos poéticos, Manoel de Barros eternizou que as águas do Pantanal são “rios infantis” e “que ainda procuram declives para correr”.
“Se aprofundar o leito do rio, a água flui mais rapidamente, vai secar o Pantanal mais rapidamente. Isso é discutido desde os anos 90. A questão é respeitar o rio, a estação da seca. Se querem navegar os 365 dias do ano, vão ter que aprofundar. Isso vai drenar a planície de inundação mais rapidamente, principalmente na seca”, afirma a pesquisadora Débora Calheiros, atualmente cedida ao MPF (Ministério Público Federal). Há 35 anos ela estuda a hidrovia.
A redução da área alagada diminui o habitat que é berçário, área de alimentação e casa para peixes, aves aquáticas e outras espécies dependentes de áreas úmidas.
O rio nasce no Mato Grosso, adentra o território de MS (margeia Corumbá e Porto Murtinho), segue pelo Paraguai e Argentina, onde deságua no Rio Paraná. A jornada é de 2.695 quilômetros.
Neste caminho das águas, chega ao Rio da Prata e ganha o Oceano Atlântico, numa rota de exportação de minérios (ferro e manganês) e, conforme reportagem do The Washington Post, uma estrada fluvial para o narcotráfico de cocaína.
O estudo da concessão do governo federal é do leito do rio no chamado Tramo Sul, localizada no trecho entre a cidade de Corumbá e a Foz do Rio Apa (Porto Murtinho). A extensão total do projeto é de 600 quilômetros.
“O Tramo Sul apresenta melhores condições para a movimentação de comboios comerciais e é economicamente mais ativo. Atualmente, este segmento do rio é essencial para o transporte de minérios, produtos agrícolas e grãos do Centro-Oeste do Brasil. Especificamente, identifica-se o minério de ferro como a principal carga movimentada. Nesse sentido, o Tramo Sul é muito importante para as exportações brasileiras pela bacia do Rio da Prata, desempenhando um papel vital no comércio regional e continental”, informa documento que subsidia a consulta pública.
Para a pesquisadora, o fato de a concessão não incluir o Tramo Norte (Cáceres a Corumbá) foi um avanço para conservação do Pantanal. Mas a conservação do Rio Paraguai no Tramo Sul depende que o corpo hídrico seja respeitado nas suas particularidades: o pulso das águas (que inclui a seca) e pontos em que afloram obstáculos naturais.
Os pontos de gargalos exigem que os comboios sejam desmembrados e retardam a passagem, fator negativo na logística do tempo é dinheiro, mas cumprem o papel de diminuir a velocidade da água. Débora destaca os afloramentos rochosos na foz do Rio Miranda e no Fecho dos Morros (Porto Murtinho).
Ela explica que as rochas funcionam como gargalo de uma garrafa, que regula a saída do líquido. A possibilidade de derrocagem nesses pontos é vista como perigosa por alterar o sistema hidrodinâmico.
Quanto à dragagem, a preocupação é com a modalidade de aprofundamento do leito. “Tem que se pensar que o Pantanal precisa ser utilizado de forma extremamente cuidadosa. Por exemplo, nos anos 60, a resiliência era muito maior do que agora. O setor privado quer o lucro. Mas é preciso respeitar o Pantanal na questão de pulso de inundação”.
O bioma acumula ciclos de seca e cheia. A escassez hídrica mais longa foi de 1963 a 1973. A partir de 1974, o ciclo foi de cheias, sendo a maior em 1988. Recentemente, desde 2019 o rio não inunda.
Do ponto de vista ambiental, a navegação no Tramo Sul pode continuar a ser realizada, mas com controle do tamanho dos comboios e somente na modalidade "dragagens de manutenção", sem aprofundamento do leito. Porém, em 2024, ano de seca excepcional em toda a Região Hidrográfica do Rio Paraguai, não era recomendável nem mesmo a de manutenção.
Mississípi – A possibilidade de que o Rio Paraguai seja navegável o ano todo levou a ser comparado ao Rio Mississípi, principal hidrovia dos Estados Unidos, pelo governador Eduardo Riedel (PSDB). Mas enquanto o Mississípi foi totalmente alterado para ser uma reta, o Rio Paraguai é um corpo hídrico de planície, portanto com traçado cheio de curvas.
“Os rios de planície serpenteiam. No Tramo Sul, tem menos curvas. Mas se querem um rio reto tem que diminuir as curvas, o que diminui o tempo de viagem. O Rio Paraguai é uma das melhores vias navegáveis naturais do mundo. Praticamente se navega oito meses do ano sem problema nenhum”, diz Débora.
Outro ponto levantado é a necessidade de outorga da hidrovia pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico).
Consulta pública - A Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) faz consulta pública até dia 23 de fevereiro para a concessão da Hidrovia do Rio Paraguai, marcando a primeira concessão hidroviária da história do Brasil.
Nos primeiros cinco anos de concessão, serão realizados serviços de dragagem, derrocagem, balizamento e sinalização adequados, construção de galpão industrial, aquisição de draga, monitoramento hidrológico e levantamentos hidrográficos, melhorias em travessias e pontos de desmembramento de comboio, implantação dos sistemas de gestão do tráfego hidroviário, além dos serviços de inteligência fluvial.
A cobrança de tarifa para a movimentação de cargas será feita quando a concessionária entregar os serviços previstos na primeira fase do contrato. Em relação ao transporte de passageiros e de cargas de pequeno porte, não haverá cobrança de tarifa.
A previsão de tarifa, pré-leilão, é de até R$1,27 por tonelada de cargas.
“Com a concessão, a hidrovia vai contar com um calado de 3 metros quando o rio estiver cheio e de 2 metros em períodos de seca, o que vai garantir a trafegabilidade das embarcações durante todo o ano, ou pelo menos a maior parte dele”, aponta documento da Antaq.
Na contramão das preocupações do impacto ao meio ambiente, o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental aponta que a “baixa magnitude dos serviços de dragagem e derrocamento não ocasionarão alterações nos parâmetros hidrodinâmicos, tais como velocidade, vazão e circulação das águas”.
Veja como participar da consulta pública
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