Apesar dos feminicídios, história de homem agredido bateu recordes de leitura
Cego há 10 meses, tatuador se adaptou e agora usa cabo de vassoura e as mãos nas paredes para se orientar
Todos os dias, a história de, pelo menos, uma mulher agredida ou morta chega ao conhecimento do Campo Grande News. São sempre histórias chocantes, de extrema violência, mas poucas impactam ao ponto de bater recordes de leitura. Todos já parecem anestesiados diante dos feminicídios, mas isso muda quando um homem é a vítima. Talvez pelo fato quase inédito, o relato de Leandro foi o mais lido aqui no jornal em 2023.
Na casa pequena e sem acessibilidade adequada, Leandro Coelho, de 32 anos, hoje luta para se adaptar à vida. Há 10 meses, o tatuador perdeu a visão após a ex-companheira, Sônia Obelar, de 41 anos, jogar ácido nos olhos dele. O motivo do crime, que aconteceu em fevereiro, seria a mulher não ter aceitado o fim do relacionamento de quase 5 anos. Na época, Sônia fugiu da polícia e ainda não foi encontrada, apesar de indiciada pelos crimes de lesão corporal gravíssima e perseguição.
Eu acompanhei o caso desde o início e voltei à casa de Leandro, no bairro Aero Rancho, para entender como ele estava se adaptando à nova rotina após a internação. A reportagem bateu recordes de visualizações e é a matéria mais lida do ano, com 713 mil leituras.
Atualmente, em outro endereço, a dificuldade ainda é a mesma: a dependência de terceiros para realizar funções básicas, como se alimentar. Esperançoso de que uma nova intervenção médica possa devolver a visão ao olho direito, no próximo ano, ele se recusa a procurar ajuda especializada para se adaptar.
Ele utiliza um cabo de vassoura como bengala, as mão nas paredes para se orientar e conseguir andar pela casa. A batalha diária, segundo ele, já não é mais contra um leão, mas sim contra gigantes.
“Estou há um mês aqui e ainda estou me adaptando. A gente vai se acostumando no ambiente. Não é muito fácil a caminhada. No momento, não quis fazer treinamento porque como tem essa cirurgia, talvez pode ser que eu volte a ver novamente. Alguém que perde a visão de uma hora pra outra é difícil demais, é impossível praticamente. Não tinha condições pra isso. Como vou atravessar daqui pra lá pra treinar. Vou ter que chamar alguém, esse alguém pode estar ocupado, é muito complicado”.
Dependência - Na antiga casa, um sobrinho cuidava de Leandro, agora ele conta com a ajuda de familiares. Por mais que afirme estar mais acostumado à nova realidade, ele ainda esbarra em obstáculos.
“Sou totalmente dependente até para me alimentar. Às vezes cheguei a cozinhar, deixaram o alho picado pra eu fazer arroz. Faço isso pra não dar muito trabalho pros outros. Não sendo um cara orgulhoso, mas a gente tem que evitar algumas situações, constrangimentos, porque eles [Familiares] têm os afazeres deles e não vão estar o tempo todo do meu lado. Por mais que seja difícil, preciso aprender a me virar sozinho."
Ele comemora que já conseguiu fazer churrasco sozinho e mexer no celular através do recurso de acessibilidade. “A vida é assim, matar um gigante por dia. Nunca foi fácil, nunca será”.
Visão - A agressividade do composto químico jogado por Sônia nos olhos de Leandro causou o vazamento do líquido ocular de um dos olhos e mais tarde, a retirada dele. O que deixou o tatuador sem expectativa de voltar a enxergar.
Antes da retirada, os médicos tentaram fazer dois transplantes de córnea. As intervenções foram rejeitadas pelo organismo de Leandro. “Consigo ter apenas a percepção de luz. Não consigo identificar nada na minha frente. Eu coloco o dedo e não vejo nada. Só um amarelo, que é a luz. Quando coloco a mão na frente vejo que está escuro e assim consigo saber se está dia ou noite”.
Durante o dia, ele dá pequenas caminhadas no quintal, para isso conta com auxílio do cabo de vassoura. Além disso, passa o tempo escutando músicas de louvor na cadeira da cozinha.
“Não tem o que fazer, praticamente. A gente tem que manter o controle porque não tem o que fazer. Se pensar coisas negativas vai piorar. Tudo tem um tempo, ainda pode voltar a minha visão de um olho. Mas mesmo que não volte, tenho que lidar. A gente se sente triste. Essa caminhada é pra poucos. Vencer dia após dia é complicado. Essa é a pior dificuldade que passei na vida.”
Financeiro - Sem trabalhar, ele conta com amparo financeiro de amigos e familiares. No início, Leandro fez uma vaquinha para ajudar com o custo de vida. Foram mais de R$ 30 mil arrecadados.
“Tô vivendo só pela graça de Deus faz três meses que fui no perícia e os caras me reprovaram. Faz 10 meses que estou nessa situação. A vaquinha foi tudo para as cinco cirurgias e tem mais duas pra fazer e pra me manter. A maior dificuldade que eu passo é financeira. Se não fosse um pessoal que me ajuda desde o começo, eu tava na rua."
Transplante - O olho esquerdo, que tem o globo ocular, vai passar por transplante de córnea no próximo ano. Além disso, segundo o tatuador, também será realizado o transplante de limbo, parte branca do olho, responsável por regenerar o epitélio compacto (camada superior) e transparente da córnea .O doador precisa ser um irmão de 1º grau.
Sônia - Sobre a ex-companheira, Leandro não esboça rancor, raiva ou sentimentos visíveis. Ele explica que a mulher estava com problemas psicológicos quando atentou contra a vida dele. Entretanto, apesar disso, ele afirma que nada justifica a conduta da ex e assume que a intenção de Sônia foi prejudicá-lo no trabalho. Conforme Leandro, ela tinha ciúmes por ele tatuar outras mulheres.
“Ela está em Curitiba desde então. O que aconteceu é que ela estava depressiva, vendeu tudo o que tinha dentro da casa e pediu uma ajuda pra mim, eu comovi e fui ajudar com dinheiro. Ela viu nisso uma expectativa para voltar. Ela estava conturbada. Três dias antes dela fazer o que fez ela mandou mensagem falando que queria tomar um café. Eu bloqueei ela e aí aconteceu."
Ele acrescenta que anteriormente ao crime, Sônia já havia falado sobre o desejo que ele perdesse a visão. "Já me ameaçou que ia orar pra deus me cegar, falou três vezes isso”.
Relembre o caso - No dia 22 de fevereiro, o tatuador voltava da academia e estava chegando em casa, no Bairro Aero Rancho, quando viu a ex-namorada, que sinalizou para que ele parasse no intuito de conversarem. Ao parar a moto, a mulher jogou o líquido de uma jarra no rosto da vítima. Dois dias depois, médico oftalmologista confirmou cegueira no tatuador.
Leandro disse que ficou "atordoado", sentindo o rosto e olhos queimando. Ele, então, andou com a moto por alguns metros, mas não aguentou a dor e perdeu a visão. Foi o momento em que parou e pediu socorro na casa de um morador. Em seguida, a vítima lavou o rosto com água da mangueira, mas sua visão escureceu e não voltou mais. Ele foi socorrido pelos bombeiros e levado para a Santa Casa.
A família do rapaz disse que a mulher não aceitava o término e era "doente de ciúmes" pelo fato de ele ser tatuador.
Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para acessar o canal do Campo Grande News.