A defesa do jornalismo e o interesse público
De um lado, crise. Desde que a publicidade migrou dos meios de comunicação tradicionais para a internet (e as empresas jornalísticas perderam o controle sobre a distribuição e entrega de seu principal produto, a notícia, para as big techs), o jornalismo enfrenta dificuldades para se financiar. Além disso, agressões a jornalistas e investidas contra a liberdade de imprensa têm se multiplicado, especialmente no Brasil, sob um discurso que ataca a própria legitimidade da profissão.
De outro lado, potência. Novos modelos de financiamento da produção jornalística, organizações independentes dos grandes conglomerados de mídia e iniciativas voltadas à checagem de informações, ao jornalismo investigativo e à contextualização dos dados e acontecimentos vêm sendo testados em sua capacidade de revigorar a instituição que já foi chamada de “quarto poder”, em alusão à sua importância para o funcionamento das democracias.
O êxito desses empreendimentos, contudo, depende do reconhecimento do jornalismo como instituição necessária não apenas à democracia, mas ao próprio projeto civilizatório. Não basta que as organizações e os profissionais do campo percebam valor no que produzem. É preciso que a sociedade compreenda qual é o papel do jornalismo e atribua relevância a esse papel. Não para alimentar uma imagem mitificadora ou romântica da profissão, nem para consumir reportagens de forma acrítica ou ingênua. Inclusive para ser capaz de notar quando o jornalismo é pouco qualificado ou se deixa corromper por interesses privados (o que é frequente), é preciso saber, afinal, para que ele serve, qual é sua função social.
Robert Park disse que as notícias estão para a sociedade assim como os sentidos estão para o indivíduo: trata-se de uma forma de conhecimento que permite ao público orientar-se no mundo social. Na mesma direção, Daniel Cornu observou que a informação jornalística serve para reduzir a incerteza do indivíduo acerca do ambiente. Da notícia sobre previsão do tempo para saber se é preciso levar o guarda-chuva ao sair de casa até a reportagem sobre a covid-19 para conhecer formas adequadas de prevenção da doença, a informação permite tomar decisões e agir com mais segurança. Lorenzo Gomis lembrou que a desinformação também reduz a incerteza do indivíduo, levando-o à ação; faz isso, porém, contra o próprio indivíduo, que, desinformado, é capaz de agir contra seus interesses, em benefício de quem promove a desinformação.
É por isso que, como afirmou Norberto Bobbio, uma definição mínima de democracia deve incluir não apenas o direito ao voto e a regra da maioria, mas as liberdades de expressão e opinião, assim como o direito à informação – que não é um direito acessório à democracia, mas, sim, constituinte.
Para que cidadãos possam fazer escolhas realmente livres, é necessário que eles conheçam as alternativas de que dispõem. E isso pressupõe uma imprensa livre, como também plural, já que a percepção sobre as alternativas (ideologias, projetos, políticas públicas, candidatos às instâncias de representação) se constrói por meio da diversidade de relatos sobre a realidade.
Em sua obra mais conhecida, Mudança Estrutural na Esfera Pública, Jürgen Habermas notou que, assim como o segredo serve para manter uma dominação baseada na vontade de quem detém o poder, a publicidade (ato de tornar público) deve servir para impor regras e condutas baseadas na razão. Ou seja, quando o poder se exerce nas sombras, fora do escrutínio público, ele pode basear-se nos interesses privados e desejos egoístas de quem o exerce. É o caso dos reis em regimes pré-democráticos, dos ditadores e tiranos.
A emergência da democracia implica que aqueles que exercem o poder tenham que submeter seus atos ao conhecimento de todos e ao debate público, a fim de torná-los legítimos. A ideia de que, uma vez eleito, um governante pode decidir ou fazer qualquer coisa, sem uma justificativa racional baseada no interesse público – já que ele estaria previamente legitimado pelos votos da maioria que o elegeu -, só pode vicejar em sociedades nas quais o exercício da cidadania e a literacia política são precários (como parece ser, lamentavelmente, o caso do Brasil).
Diferentemente do autocrata, que tem direitos divinos ou de todo modo incontestes, o governante numa democracia deve estar permanentemente sujeito à avaliação do público. Vale dizer, não só o governante, mas todos que influenciam os rumos de uma sociedade – de juízes a grandes empresários – devem ser monitorados para que suas ações encontrem limites éticos e não se contraponham ao bem comum.
E como tudo isso seria possível numa sociedade sem jornalismo?
Dedicar-se ao trabalho de apurar informações, checar declarações de autoridades, pesquisar em bancos de dados, entrevistar especialistas, testemunhar eventos, investigar motivações dos poderosos e buscar respostas que os cidadãos têm o direito de saber demanda tempo, conhecimento, técnica e experiência. Não se trata de emitir opiniões, mas de produzir relatos sobre acontecimentos significativos que tenham correspondência com o real e sejam capazes de captar, o quanto possível, sua complexidade.
Com as novas tecnologias de comunicação, “todo mundo” pode expressar pensamentos e construir narrativas sobre o mundo. Mas “todo mundo” pode cobrir diariamente as pautas do Congresso Nacional, acompanhar a agenda do presidente da República, viajar até locais afetados por rompimentos de barragens ou queimadas, investigar esquemas internacionais de evasão fiscal, checar a veracidade de arquivos vazados e garimpá-los para encontrar informações de interesse público, “traduzir” descobertas científicas para leigos, dedicar-se a contar histórias de pessoas comuns que desvelam aspectos problemáticos da sociedade, entre outras atribuições do jornalismo?
Selecionar notícias relevantes, monitorar o poder, explicar os acontecimentos que afetam a vida das pessoas: aqui está o compromisso do jornalismo com o interesse público, princípio fundante da profissão. Esse compromisso tem sido muitas vezes irrealizado quando quem detém os meios de produção da informação privilegia interesses privados ou de grupos de influência ou quando os próprios jornalistas, por razões diversas, deixam de fazer o seu trabalho.
A necessária crítica ao descompasso entre o discurso iluminista e as práticas do campo jornalístico, contudo, não pode servir para destruir o próprio campo – que, em meio a contradições, atravessa essas primeiras décadas do século XXI tentando superar a crise e reencontrar sua potência. É certo que o jornalismo não irá lograr tal intento sem fazer a defesa inegociável do interesse público. De outra parte, resta saber se também será de interesse público defender o jornalismo.
(*) Basilio Sartor é jornalista, doutor em Comunicação e Informação e professor do Departamento de Comunicação da UFRGS.