A democracia sem populismo pode nos salvar
Estou pensando no debate, nos comentários que se seguiram, na CNN e na FOX e, sobretudo, nos comentários que estão aparecendo nas redes sociais elogiando o Trump e difamando o Biden, ambos candidatos à presidência dos EUA.
Cada dia que passa, aumenta o meu temor de que os regimes democráticos no mundo estejam desaparecendo. No Brasil, soma-se a este medo a constatação de que o respeito pela educação, pela ciência e pela tecnologia se esvai, com atitudes concretas do presidente Bolsonaro e, quem diria, do governador Doria.
Esta reflexão se soma a minha preocupação com a situação que o planeta enfrenta hoje. Está cada dia mais claro que a espécie humana enfrenta uma tempestade perfeita composta de três categorias de tragédias: desigualdade social, desastres ecológicos e pandemias. Não é necessário consultar as runas, os astrólogos ou as profecias religiosas para ver, perto de nós, componentes dessas tragédias.
Não há nem exagero nem drama nesta constatação, afinal são dados experimentais que prenunciam, simplesmente, a possibilidade da extinção de mais uma espécie, a humana. Um cientista, como eu, se quer permanecer cientista, nunca pode se limitar apenas a observar um fenômeno. Minimamente, o fenômeno observado, já definido pela comunidade dos cientistas como observável, deve ser descrito.
A comunidade que aprecia esta observação pode, claro, tentar criticar a sua validade, mas: como negar que a distância entre os que têm e os que não têm está aumentando no mundo todo, e que esta pandemia escancara essa distância? Como esconder o fato de que, cada vez mais, os 1% de mais posses são donos de porcentagens maiores dos produtos nacionais brutos?
Como esconder os milhares de mortos pela pandemia de covid-19? Como negar, depois de três ou quatro pandemias nas últimas décadas, que devemos nos preparar para a próxima? Por fim, é só sentir o calor dos últimos dias, os extremos climáticos que se repetem, a destruição das florestas e do cerrado, a acidificação dos oceanos, entre muitos outros indicadores, para afirmar que o prenunciado ponto de não retorno do equilíbrio deste mundo como conhecemos está próximo.
A quantidade de espécies animais, vegetais ou microbianas deste planeta que desapareceram, inúmeras sem deixar rastros, é tão enorme que nem sabemos quantificá-las. Assim, a desaparição de mais uma, a humana, poderia nem deixar marcas indeléveis. Mas, à diferença dos dinossauros, ou os mastodontes, a espécie humana tem plena consciência de que a sua desaparição como espécie não é inevitável. A princípio, nada impede que, com a ciência e a tecnologia existentes e as que estão por vir, o homo sapiens possa reverter, em grande medida, as categorias trágicas que hoje nos ameaçam.
A barreira que nos impede de enfrentar iniquidade social, mudança climática e pandemia não passa nem pela ciência nem pela tecnologia, e se resume a uma única palavra: política.
Estratégias racionais de curto, médio e longo prazo, com marcos temporais de aferição bem definidos, metas acordadas e mensuráveis podem ser formuladas para impedir que a temperatura do planeta exceda 2oC nos próximos trinta anos. Na verdade, algumas destas já foram formuladas desde a Conferência do Clima no Brasil em 1992.
Diminuição das abissais diferenças socioeconômicas que nos separam dependem de medidas que visam a igualar as oportunidades e passam, sobretudo por três pilares: educação, educação e educação. Claro que ninguém aprende de estômago vazio, claro que neste século não se aprende nem se obtém trabalho sem acesso à internet, mas esse patamar mínimo permite educação, e somente assim será possível evitar o fosso alastrante prenunciado pela era da informática. Também é inaceitável uma concentração de renda gigantesca que permite, até em países desenvolvidos, a existência de segmentos da população desassistidos e mal nutridos.
Consciência da ausência de fronteiras para vírus ou bactérias pandêmicas, bem como a necessidade de comunidades locais de ciência bem estruturadas, capazes de dar orientações a políticas racionais de saúde, ciência de fronteira vigilante, entre outros componentes estratégicos, podem preparar o mundo para futuras pandemias.
As condições para impedir a desaparição da espécie, portanto, estão dadas. Estamos munidos de conhecimento e de tecnologia, capacidade de enfrentar enormes desafios com mais ciência, tecnologia e humanidade. Porém, quando um candidato a presidente da maior potência planetária se recusa a declarar sua repulsa aos movimentos de supremacia branca, declara para um grupo nazista que deve, simplesmente, ter paciência, anuncia em alto e bom som que aceita os resultados da eleição somente se ele for eleito, e ainda não se manifesta se vai aceitar qualquer resultado eleitoral sem induzir à violência seus seguidores, é difícil ver saídas consequentes para evitar as tragédias da tempestade perfeita.
Por aqui, o atual presidente, além de sua lamentável atitude perante a pandemia de covid-19, se dá ao luxo de destacar o negacionismo das queimadas da Amazônia e do Pantanal, que se fazem presentes em seu discurso como propaganda da suposta política ambiental na mais importante instituição multilateral, a ONU, num discurso lamentável, repleto de inverdades.
Já no Estado de São Paulo, onde pesquisa e ensino superior vêm contribuindo para o desenvolvimento intelectual, social e econômico, o governador pretende acabar com a autonomia das universidades e da Fundação de Amparo à Pesquisa, que permite que este Estado seja o mais desenvolvido do País.
Em um Estado democrático, o enfrentamento a tempestades perfeitas como a descrita deveria conduzir a um debate social amplo onde as melhores armas seriam usadas para mitigar cada um dos componentes que nos ameaçam, visando ao enfrentamento e à diminuição do sofrimento de todos. Não é isso que estamos vendo, nem nos Estados Unidos nem no Brasil.
Está na hora de reagir, focando no perigo comum, a extinção da espécie, com a clareza de que somente com um regime democrático, onde negacionismo e populismo não tenham espaço, poderemos ultrapassar estes momentos.
(*) Hernan Chaimovich é professor Emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq.