A dengue e a nova política industrial do Brasil
Dois temas foram destaques na imprensa brasileira no início de 2024. A nova política industrial, lançada pelo governo federal com o nome de Nova Indústria Brasil, e o aumento em todo o País de casos de dengue.
Dezenas de colunistas dos principais jornais se revezaram em criticar e atacar a proposta de política industrial. Poucos se preocuparam com a dengue. Somente um deles na grande imprensa utilizou o tema saúde para criticar a nova política industrial. Afirmou ele, em 22 de janeiro de 2024:
“Imagine se fôssemos enfrentar a pandemia de covid apenas com produtos nacionais. Abriríamos mão das melhores vacinas disponíveis, como, aliás, o governo ameaçou fazer com relação à vacina da dengue em julho do ano passado, dando prioridade à vacina do Butantan, que nem pronta estava. Felizmente, voltou atrás”.
A argumentação desse colunista começava com um equívoco básico em relação ao enfrentamento da covid-19, porque nossa dependência externa de insumos para uso na pandemia foi quase completa, mas tema para outro momento.
Quanto à dengue e à vacina brasileira, uma semana depois o The New England Journal of Medicine publicou ensaio clínico mostrando a eficácia da Butantan-DV para dengue, semelhante à QDenga (do laboratório japonês Takeda), mas com dose única, o que trará uma relação custo-benefício melhor para o produto nacional.
Ou seja, o produto nacional é superior ao importado. No momento, a Butantan-DV está sob o crivo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para permitir a seu uso nos programas de vacinação em todo o País. Como a vacina Butantan-DV deixará de ser artigo científico com DOI e muitas citações bibliográficas para ser uma injeção aplicada no braço dos brasileiros?
A resposta óbvia que é que ela precisará ser produzida industrialmente. Voltamos então à nova política industrial do Brasil, na qual os críticos atacam indiscriminadamente os financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Adianto que, sem o BNDES, a Butantan-DV demorará a chegar à população.
Vamos descrever de forma simplificada o quanto a produção própria, principalmente com produto com patente nacional, é fundamental para a saúde coletiva. Para isso vamos apresentar cálculos simples de disponibilidade e custo da única vacina aprovada, a QDenga, baseados nos arrazoados da Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização (CTAI) do Ministério da Saúde.
O CTAI avaliou que a faixa etária prioritária é a de 10 a 14 anos em distritos e municípios com incidência elevada de dengue. Para tanto, o Ministério da Saúde já adquiriu da Takeda, em 2024, cinco milhões de doses da vacina QDenga e encomendou mais nove milhões de doses em 2025.
Aceitando-se que a vacina garantirá imunidade por dois anos, em 2024-25 aplicaremos 14 milhões de doses em sete milhões de jovens, um pouco mais da metade de brasileiros nessa faixa etária apontado no Censo Nacional de 2022, que são 13 milhões. Restariam em 2026 seis milhões de jovens a serem vacinados pela primeira vez, o que equivale a 12 milhões de doses. Isso aceitando que aqueles imunizados em 2024 receberiam uma dose nova somente em 2027.
Além da incapacidade de fornecimento de vacina para nossas necessidades, há um custo apreciável que afeta nossa balança comercial. Segundo o próprio Ministério da Saúde, as negociações com o fabricante da QDenga levaram à redução expressiva do preço por dose de R$ 170 para R$ 95. Mesmo com esse desconto, o dispêndio em três anos para a totalidade da população entre 10 e 14 anos será de R$ 2,5 bilhões.
No entanto, se quisermos disponibilizar a vacina para a faixa etária para a qual a QDenga foi aprovada, isto é, entre 5 e 59 anos, teremos que ofertar a vacina a 158 milhões de brasileiros — 316 milhões de doses — em um biênio com um custo de aquisição do imunizante de 30 bilhões de reais anuais.
Muitos argumentarão que parte considerável dessas vacinas poderá ser paga, no caso daqueles que tenham condições de adquiri-las em clínicas privadas. Esse fato desonera minimamente o orçamento do Ministério, mas não dos cofres federais, porque a compra privada, quando abatida na compensação anual do imposto de renda de pessoas físicas, implicará renúncia fiscal.
Outro fato relevante é que a vacina sendo adquirida pelo Ministério ou por clínica privada ampliará ainda mais o déficit de nossa balança comercial na área de insumos médicos, cujo dispêndio crescente ano a ano, segundo o Valor Econômico, foi de 22 bilhões de dólares em 2022.
Torna-se evidente o custo vacinal totalmente baseado na compra de uma única empresa, que não necessariamente terá condição em produzir os insumos. Se ao menos essa empresa instalasse plantas em território nacional para empregar brasileiros, trazer tecnologia nova e desenvolver a economia regional até seria interessante. Mas, não. Estamos somente garantindo empregos no Japão!
A dezena de colunistas da nossa imprensa que abominam uma nova política industrial está em sintonia com o discurso das empresas multinacionais instaladas no País, que argumentam que as plantas para vacinas que temos hoje no mundo seriam suficientes para atender a necessidade global.
Um argumento puramente ideológico que se choca com a realidade aqui descrita da produção de vacinas para dengue. Portanto, uma nova política industrial é de interesse da saúde pública e contrária ao interesse das farmacêuticas aqui instaladas.
A conclusão é que a fabricação da vacina para a dengue, a Butantan-DV, caso aprovada pela Anvisa, implicará investimentos em plantas industriais, e justamente com esse objetivo é que nós temos o BNDES. Esse investimento deverá ser no próprio Butantan, na Fiocruz ou em instituições históricas que estão com capacidade produtiva cada vez menor (Ezequiel Dias, em Belo Horizonte, Vital Brazil, em Niterói, e Ataulpho Paiva, no Rio de Janeiro). E talvez em laboratórios privados.
O importante será garantir o fornecimento da vacina à população, com custo menor, propiciando empregos qualificados e certamente abrindo a possibilidade de exportação dos produtos.
Esperamos que a Nova Política Industrial do Brasil esteja sintonizada com as prioridades epidemiológicas.
(*) Paulo A. Lotufo é professor da Faculdade de Medicina, diretor do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica e superintendente de Saúde da USP.