A educação e a escola em tempos de coronavírus
O coronavírus impactou a escola. Impactou a escola porque os estudantes deixaram de ir para a escola. Impactou a escola porque, neste momento, os professores não têm mais a escola como seu território. E as aulas, quiséssemos nós ou não, passaram a ser a distância. Nesse sentido, cabe a pergunta: o que poderemos mobilizar dessa experiência para projetarmos futuras transformações da escola?
Alguns já assinalam a perda de qualidade do ensino ministrado virtualmente, já apontam o risco de se transformar a educação presencial em ensino a distância, demonstrando preocupação quanto à reposição presencial das aulas perdidas. Outros procuram visualizar qual é a potência do que vem acontecendo; ou seja, quais lições poderemos tirar desse tempo em que a escola não estava à nossa frente?
A escolarização instituiu-se no mundo moderno a partir da Reforma Protestante, quando se pensou que todos deveriam passar a ter acesso à leitura. Criaram-se, então, colégios voltados para ensinar a uma parcela da juventude os mecanismos da cultura letrada; e, com eles, hábitos de convivência e de civilidade.
É fato que havia escolas desde a Antiguidade clássica; escolas nas quais se procurava transmitir o universo das letras: as escolas dos gramáticos da Grécia clássica ou as escolas paroquiais da Alta Idade Média, as escolas monásticas, dos mosteiros, ou as escolas municipais do século XII.
As próprias universidades, em alguma medida, cumpriram esse papel. Mas foi com o surgimento dos colégios, a partir do século XVI, tanto no mundo católico quanto nos territórios reformados, que essa escolarização ganhou método. Ganhou técnica e passou a inscrever-se a partir de grupos que seriam ensinados simultaneamente.
Esse modelo escolar foi apropriado pelo Estado, com os Estados absolutistas e especialmente quando, com a Revolução Francesa, a ideia de nação passa a dominar a pauta da referência letrada. Nesse sentido, os métodos de ensino já existentes dos colégios serão mobilizados para a formação dos futuros cidadãos da pátria. Assim se desenvolveram as redes de ensino público a partir do século XIX, que, pouco a pouco, puseram em ação o ensino simultâneo.
No início do século XX, essa escolarização que se expandia passa a ser vista como inoperante, ineficaz. O internacionalmente renomado movimento da Escola Nova irá criticar a obsolescência dos métodos adotados, os limites e o conservadorismo da forma da escola, o engessamento das práticas de ensino, excessivamente centradas na palavra do professor.
Defender-se-á, a partir de então, maior autonomia do aluno, liberdade nos métodos de ensino adotados, inovações nas estratégias didáticas, bem como a necessidade de se situar como ponto de partida do ensino o conhecimento prévio, ou seja, aquilo que o aluno já sabe e traz com ele.
A escola aparentemente se abre. Ocorre que o formato da escolarização estava tão atado aos usos e costumes de uma rotina cristalizada que muito do que era defendido não passava dos portões da escola e não chegava, portanto, ao chão da classe. O debate sobre a inovação pedagógica teve lugar durante toda a primeira metade do século XX, embora as práticas de inovação tenham sido ainda um tanto quanto tímidas nesse período.
Desde os anos 60 do século passado, o grande tema do debate pedagógico será a busca de se superar o fracasso escolar. Nesse sentido, pensava-se a necessidade de que houvesse democratização do ensino: democratização no sentido de extensão das oportunidades escolares e democratização no campo das relações escolares.
Além disso, passa-se a indagar sobre os porquês de parcela considerável daquelas crianças ingressantes na escola não conseguir galgar os degraus sucessivos da escolarização. O que determinaria o fracasso escolar? Será que as crianças iam mal na escola porque integravam famílias que possuíam todos os tipos de escassez? Falava-se em déficit e em carência.
A partir dos anos 70, crescem as teorias da desescolarização, que vão questionar o próprio lugar social que a escola ocupa na sociedade. Na mesma época, ganha lugar uma crítica política acerca da condição da vida escolar. Autores do espectro da esquerda passarão a assinalar que a escola representaria o que passou a ser considerado como reprodução cultural da desigualdade social, sublinhando que a escola seria um aparelho ideológico do Estado, que a escolarização, portanto, desempenharia um papel de atestado ideológico da visão burguesa de mundo; que o capital cultural das crianças de camadas economicamente favorecidas também facilita seu percurso de escolarização.
As últimas décadas do século XX e as primeiras do século XXI presenciaram o deslocamento desse discurso. Hoje o debate centra-se na discussão acerca do público-alvo da escola e de sua interação com os conteúdos culturais que são, pela instituição, trabalhados. A questão do multiculturalismo e do debate identitário toma conta das discussões no campo educacional. A ideia de um currículo descentrado, multicultural, contrário a modelos europeus e norte-americanos ganha terreno.
Hoje o que se percebe, entretanto, é que a maioria das formas de seleção, de avaliação e de promoção dos alunos corresponde, em larga medida, às desigualdades anteriormente dadas no campo societário. Ou seja: a escola produz novas desigualdades, com os critérios de que se vale para fazer valer suas táticas e suas estratégias rotineiras.
A exclusão, nesse sentido, deixa de estar apenas fora da escola; mas tem correspondência com os processos avaliativos, estabelecendo mecanismos de clivagens das performances dos alunos. Assim, as marcas de seleção do desempenho dos alunos engendram uma nova distribuição do mérito.
Naquele final do século XX e início do XXI também vimos o computador impactar a nossa cultura letrada. Pela primeira vez, a cultura do códice impresso é colocada em questão. O fato é que a escolarização lidou mal, desde o princípio, com a realidade da computação; e, sobretudo, com o universo da internet. Como manter a forma da escola a partir da existência de uma rede mundial de computadores interconectada?
Aqui entra a discussão sobre as atividades a distância a serem desenvolvidas neste período de pandemia. Por um lado, transformar o conteúdo do ensino ministrado em atividades a distância nos leva a um impasse, em virtude daquilo que é efetivamente um dado: há alunos nas escolas públicas e mesmo nas universidades que não têm acesso a internet banda larga, de tal modo que, muitas vezes, parece inviabilizada a própria mobilização dos recursos da internet para dar sequência ao ensino.
O que fazer, portanto, com os alunos que não possuem condições objetivas de acompanhar o ensino a distância? Se não olharmos para eles, corremos o risco de favorecer uma segregação social que é, sob todos os aspectos, inadmissível. É preciso, por definição, que tenhamos por princípio a incorporação de todos os nossos alunos ao nosso projeto de educação. É preciso chegar até esses alunos. Esse é um ponto.
Por outro lado, vivemos em tempos de exceção. E esses tempos exigem, em alguma medida, a reinvenção da educação e da escola. É preciso inventividade. É preciso experimentação. É preciso ter a coragem de criar. E para criar, há de se romper com certezas presumidas e verdades pressupostas. Nesse sentido, valer-se de novas plataformas, utilizar novas estratégias, tudo isso requer ponderação na decisão e urgência na ação. As novas plataformas que abrem flanco para novos métodos de ensino levam a internet efetivamente para dentro da escola.
Não se trata de conversão definitiva do ensino presencial a práticas virtuais. Trata-se de valer-se, neste momento particular, de recursos tecnológicos que são oportunos para projetarmos o futuro. Um futuro que não vai aderir ao ensino a distância. Mas um futuro que vai, sim, mobilizar de maneira inteligente as ferramentas e plataformas da internet. Cabe aos educadores descobrirem como agir na urgência com inventividade, com coragem de criar o novo, com respeito às tradições e com atenção a todos os alunos.
A escola, pelo coronavírus, finalmente chegou ao tempo da computação e da internet. Caberá às Faculdades de Educação, às Secretarias de Educação, enfim, a todos os educadores comprometidos com a educação pública integrarem e interpretarem esse processo. Quem não souber mergulhar na ocasião que a história nos coloca ficará para trás. São tempos muito tristes estes, que, no entanto, nos trouxeram uma oportunidade pedagógica. Há de se avançar e olhar para frente.
(*) Carlota Boto é professora da Faculdade de Educação da USP.