A guerra contra o gênero
Para entender o presente, façamos uma rápida retrospectiva partindo da redemocratização brasileira após a ditadura de 1964-1985. Em 1988 fizemos uma nova Constituição – a Constituição Cidadã -, para a qual as mulheres enviaram uma “Carta” na qual reuniram as reivindicações discutidas e coletadas por quatro anos pelo País todo. Em síntese podemos afirmar que a partir de 1988 as brasileiras alcançaram a cidadania política. Destaque-se que isso significa que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, as mulheres podem reconhecer a paternidade de seus filhos independentemente da presença do pai; a mulher passa a ter direito ao trabalho e a seus gastos independentemente da autorização do marido. Garantia de direitos trabalhistas, como seguro-desemprego, abono de férias, jornada semanal de 44 horas, direito à greve e à liberdade sindical.
As greves e reivindicações eram antes tratadas como casos de polícia, marcando a manutenção de uma mentalidade escravagista. Passamos a ter liberdade de expressão, fim da censura aos meios de comunicação, filmes, peças de teatro e músicas etc. No campo da saúde, foi criado o SUS – Sistema Único de Saúde – no País; passou-se a discutir um marco nos direitos dos índios, com demarcação de terras indígenas e proteção do meio ambiente. As entidades e lideranças de mulheres negras com ampla trajetória política ressaltavam a necessidade de incluir pautas como a condição das mulheres encarceradas e o tráfico de mulheres.
Esse quadro dos direitos sociais e políticos descreve avanços num país democrático.
Mas… como sabemos, nas sociedades as mudanças são dinâmicas, há avanços, mas também retrocessos. E sobretudo no capítulo das condições de gênero é preciso ficar alerta, pois há conflitos de interesses, valores tradicionais resistem. (Basta ver o que está acontecendo hoje no Afeganistão ou na Turquia.)
Na segunda metade do século 20 e no século 21, o Brasil passou por profundas transformações estruturais: urbanização ampla, modernização, redução da população e do trabalho rural, crescimento do terciário, tecnologia avançada, desenvolvimento da ciência, ampliação da educação universitária. Houve mudanças profundas na estrutura econômica, ampliou-se a diversificação das classes sociais, porém sem que tivesse havido redução da pobreza, da marginalidade e sobretudo inclusão da população negra e migrante rural-urbana. Atravessamos crises econômicas, altos e baixos, e lutas políticas pelo poder.
Pode-se descrever a modernização como errática, instável. O neoliberalismo marcou a sociedade aprofundando a precariedade, a desigualdade. Não se criaram institutos de proteção social. As diferenças econômicas aprofundaram ainda mais o racismo. As mulheres negras eram (e ainda são) a base da pirâmide social: exerciam funções manuais e frequentemente desempenhavam tarefas tidas como improdutivas, ligadas à economia do cuidado, como empregadas domésticas ou cuidadoras. Paralelamente cresceu a formação de quadros intelectuais e do ativismo político de mulheres negras associadas ao feminismo.
Ao longo das duas últimas décadas houve uma desindustrialização e ampliou-se o desemprego urbano. Segmentos populacionais foram expulsos num processo de gentrificação, de planejamento urbano voltado para grandes obras corruptas, cresceu a violência, o policiamento se tornou desajustado e cresceram as milícias.
A sociedade brasileira, que era predominantemente católica, viu a ampliação dos evangélicos radicais. Do ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, as duas vertentes religiosas assemelham-se: têm orientações conservadoras, são contrárias ao aborto, pelo direito do nascituro e contra a educação sexual.
Como entender então que uma sociedade com economia neoliberal eleja um governo que adota uma política conservadora sobre os costumes e seja contra a ciência, contra as mulheres, contra as relações sociais de gênero?
Cada vez mais as famílias se reorganizam em torno de uma mulher e seus filhos: atualmente as mulheres chefiam quase 40% das famílias. Paradoxalmente essa constelação familiar não foi suficiente para extinguir o patriarcado. Ao contrário, a desestabilização econômica masculina possivelmente seja responsável pelo extraordinário número de feminicídios. Pesquisas mostram que se aceita que a mulher trabalhe, mas se valoriza muito mais que ela cuide dos filhos e da casa.
A contradição entre o conservadorismo dos costumes e a modernização dos meios de comunicação foi fartamente manipulada com propósitos políticos. O programa de “educação sexual para jovens e adolescentes”, do governo federal (pré-2018), passou a ser diabolizado pelos políticos conservadores. O atual presidente da República em sua campanha eleitoral difundiu, através de fake news (portanto, usando meios muito modernos de comunicação), que o programa de educação sexual nas escolas visava a sexualizar as crianças, viciá-las, etc. Embora inverídico, corroeu a proposta que acabou retirada dos planos governamentais e desqualificou os candidatos de oposição.
A agenda de gênero entrou nessa mesma sintonia: passou a ser qualificada como uma propaganda “comunista”. Portanto, para excluir uma “agenda de gênero”, o governo federal e seus apoiadores propuseram criar uma “escola sem partido”. Desnecessário explicar o contraditório de uma escola sem partido justamente por incluir “um determinado” partido!
No momento o País vive a destruição de uma política de gênero. O termo “gênero” passou a ser proibido pelo governo federal, pelo Ministério da Educação, foi excluído dos livros escolares. Enquanto no mundo civilizado a ciência acordou justamente para incluir em suas pesquisas a dimensão gênero – pesquisando o masculino e o feminino -, aqui voltamos para o período medieval. Os ministros acompanham o presidente nessa campanha antigênero. O quadro fica completo quando se analisam as ações do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos – que lidera a política de guerra a gênero. Sua ministra é contra políticas de educação sexual, contra aborto, inclusive de adolescentes e em casos de estupro ou incesto, e para completar agora propõe que os jovens se abstenham de ter relações sexuais até o casamento. Resultados são visíveis: aumentou a mortalidade materna, sobretudo de jovens adolescentes.
O quadro autoritário descrito tem estimulado reações bastante intensas que pretendem estancar a erosão da democracia. Nas universidades e nos organismos científicos há intensas manifestações: esse meu pronunciamento crítico ao apagamento da questão de gênero só é possível justamente porque faço parte de uma universidade que é aberta às várias formas de conhecimento, não censura nem impede todas as vertentes inovadoras. Os movimentos sociais estão relativamente nublados, mas os partidos políticos reacenderam a antiga ebulição contestadora. Como vivemos um regime presidencialista, grandes manifestações se articulam aos períodos eleitorais. Começam a despontar reações ao movimento fascista do governo atual e os dados de pesquisa têm mostrado que as mais intensas reações provêm da população feminina.
A cada dia é preciso lembrar à sociedade que somos pessoas com direitos humanos. Já nos confundiram com seres dotados apenas de um útero, destinadas à procriação; destinos determinados por um corpo sem inteligência, desprovido de vontade própria, subserviente a outro ser. Ainda hoje se supõe que “as” mulheres são um grupo homogêneo, quando muito uma massa trabalhadora.
Os feminismos vieram atuar em espaços historicamente construídos e tiveram de desconstruir ideologias que desumanizam, em geral, as mulheres e, em particular, as negras, as indígenas, as pobres, as estrangeiras. Múltiplos movimentos feministas, grupos de mulheres de todas as classes sociais, se conscientizaram e se organizaram pelo Brasil, formando redes, muito antes da internet. As lutas feministas estimularam reivindicações por direitos sociais igualitários além das mulheres, dos negros, dos homossexuais e de outros grupos sociais marginalizados.
A história dos movimentos feministas ensina que precisamos ficar alertas: avançamos muito, mas os riscos de retorno estão no trajeto. As conquistas não são definitivas, se perdem se não houver um constante alerta.
(*) Eva Alterman Blay é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.