A pandemia e a sociedade do trabalho
Os momentos de crise sempre evidenciam as questões latentes nas sociedades, elevando ao absurdo nossos problemas e suas complexidades.
Em uma pandemia, não surpreende que uma dessas questões seja exatamente o trabalho: central em relação ao convívio humano e às construções sociais, é sobre o trabalho (e, consequentemente, sobre o não trabalho) que pesam questões relevantes: quem trabalha para conter a crise? Como trabalha? E qual será a sorte da classe-que-vive-do-trabalho quando não pode trabalhar? Como equacionamos as demandas produtivas diante das restrições ao trabalho vivo?
O drama que vivemos faz pensar os limites da medida de saúde pública consistente no isolamento e na quarentena se, para grande parte dos trabalhadores, a possibilidade de preservar a saúde é um luxo não “concedido” pelos seus empregadores.
Em um mercado de trabalho forjado a partir de raízes escravocratas e que delas não se desprendeu, fazendo com que a tutela pública da regulação do trabalho alcance, com eficácia desigual e estratificada em termos de gênero e raça, diferentes grupos de trabalhadores, as notícias sobre empregadas domésticas não contaminadas servindo empregadores comprovadamente contaminados pode até nos aviltar, mas não surpreende.
A ausência de previsão legal para um fenômeno tão excepcional (e a recém editada Lei nº 13.979/2020 fala menos do que seria necessário sobre as relações de trabalho sob o coronavírus) permite que diversas interpretações e leituras do ordenamento jurídico sejam colocadas na mesa para administrar a situação, sendo muitas delas arbitrárias e pouco razoáveis.
De quem é a responsabilidade pelo não trabalho em face da suspeita de contaminação do próprio trabalhador ou de outro trabalhador no ambiente de trabalho? De quem é a responsabilidade e o ônus da ausência de prestação de serviços se o trabalhador efetivamente testa positivo para o coronavírus? Quem arca com a perda financeira do não trabalho quando esse decorre não da contaminação do trabalhador ou de alguém no seu ambiente de trabalho, mas de um familiar idoso ou criança que não pode ser deixado sozinho na quarentena?
As perguntas colocadas para o Direito do Trabalho nesse momento estão sendo respondidas a partir dos conceitos, valores e matrizes ideológicas que permeiam a nossa ordem jurídica. Não haveria dúvida em responder, a partir da Constituição de 1988, do teor do art. 2º da CLT e do que dizem os instrumentos internacionais de direitos humanos trabalhistas, que é o empregador quem arca com os riscos da atividade econômica ou que ao menos os administra antes que o Poder Público construa caminhos coletivos para o a solução da crise.
Entretanto, tanto quanto esse olhar, recairão sobre o Direito do Trabalho, nesse singular momento, os olhares daqueles que só a partir de 2013 (com a Emenda Constitucional nº 72/2013) pensaram no trabalho doméstico em condições de igualdade com relação aos demais trabalhadores e que se acomodam, confortavelmente, na matriz escravocrata do trabalho reprodutivo desempenhado pelas mesmas mulheres negras que outrora o faziam na escravidão.
Também recairão sobre o Direito do Trabalho os olhares daqueles que entendem que o grande vilão da nossa condição de dependência econômica e do nosso subdesenvolvimento é o trabalhador, que apenas se favorece da generosa criação de empregos por parte do sofrido empresariado e não assume riscos, nem mesmo o de ser manter vivo numa pandemia; por quem entende que o trabalho feminino é mais caro que o masculino por força da gravidez e da licença-maternidade, ignorando todo o trabalho não pago exercido por mulheres em seus lares (na guerra, na convalescença, na normalidade e na crise) e o quanto isso as vulnerabiliza na economia do tempo, na rotatividade no trabalho e na progressão salarial.
O discurso neoliberal, que artificialmente quer ignorar as condições sociais impostas a cada grupo por suas trajetórias históricas e seus marcadores de classe, raça e gênero, atribuindo a quem vive do trabalho uma pesada responsabilidade de “bem-suceder” em uma sociedade desigual, vê sua própria racionalidade de calças curtas: não é possível sobreviver ao coronavírus individualmente; não é possível fazê-lo coletivamente sem compromisso forte do Estado; não é possível sacrificar os mais frágeis nem mesmo por cínica indiferença, porque a exposição dos vulneráveis é a exposição de toda a sociedade.
E, então, os liberais pedem aumento do orçamento público para saúde e com isso, reconhecem: o neoliberalismo é uma lógica que não pode assegurar a sua própria radicalização.
E o que nos resta, então, além de um reforço da atuação estatal em matéria de saúde pública? A viabilidade das medidas de prevenção à generalização do contágio se deita necessariamente numa tela pública de proteção social chamada emprego, justamente aquele tão combatido pelo discurso da reforma trabalhista, pelas “novas” tecnologias e plataformas de recrutamento do trabalho humano, pelo disseminado discurso do empreendedorismo.
É ele, o emprego, que permite que pessoas fiquem em casa, sendo remuneradas e fazendo uso da tecnologia para submeter-se à direção empresarial remotamente. É justamente ele que assegurará que os contaminados ou suspeitos de contaminação tenham faltas justificadas (com remuneração e repouso) para não replicar o contágio comunitariamente. É ele que vai assegurar eventual acesso ao sistema previdenciário, se os afastamentos pela doença se prolongarem para além de 15 dias.
E emprego protegido é exatamente o que falta ao Brasil. A taxa de informalidade atinge hoje 41% da população, entre os quais se incluem trabalhadores por conta própria, que, essencialmente, seja por força de relações empregatícias fraudulentas/disfarçadas, seja pelo fato de ganharem a vida por conta própria, encontram-se desamparados de qualquer vínculo jurídico que garanta seus afastamentos por razões sociais ou de saúde, não acessando, na grande maioria dos casos, sistemas de proteção social básicos como o FGTS e o INSS.
Eu me refiro aos vendedores ambulantes, “flanelinhas”, trabalhadoras domésticas diaristas, manicures, trabalhadores “pejotizados”, também motoristas e entregadores de aplicativos, cujo rendimento diário depende do trabalho e cujas ausências ao serviço, justificadas ou injustificadas, representam imediato prejuízo financeiro. Vinte e cinco milhões de brasileiros encontram-se nessa condição. Alijados do Direito do Trabalho, o custo para que essas pessoas adiram a recomendações de saúde pública reputadas essenciais pelas autoridades é o seu próprio sustento e sobrevivência.
Estamos falando dos nossos “ganhadores”: pessoas, predominantemente negras, que persistiram, desde o pós-escravidão, engajadas no trabalho informal por meio da atividade de ganho, porque não foram absorvidas pelas formas juridicamente tuteladas de trabalho nem foram inseridas socialmente de forma satisfatória para que pudessem a elas se habilitar. Esse segmento estrutural do nosso mercado de trabalho tem sido estudado pela literatura recente, sobretudo pelos estudos raciais, não como figura acidental nos momentos de crise, mas como marcador central do nosso mercado de trabalho que, em momentos de crise e em função do discurso neoliberal, tende a crescer, “engolindo” fatias do mercado de trabalho formal.
Algumas campanhas nas redes sociais tem fomentado que aqueles que contratam habitualmente os serviços desses sujeitos, por solidariedade, realizem o pagamento e dispensem o trabalho (e por consequência), o deslocamento urbano dessas pessoas.
Também algumas plataformas de aplicativos digitais, voluntariamente, tem sugerido uma “assistência financeira” aos trabalhadores quem não reconhecem como empregados (!) durante os períodos de afastamento por acometimento do coronavírus, garantindo aos consumidores que esses serão forçadamente desligados da plataforma se contaminados…
As contradições da nossa sociedade desigual se evidenciam quando o que é um autocuidado fundamental e uma conduta comunitária imperativa em uma pandemia se revela para uns como direito, para outros como favor, para outros como risco à sua subsistência.
O tamanho da fragilidade da sociedade brasileira diante do coronavírus é o tamanho da sua crise do trabalho. A solidariedade sempre é bem vinda e apenas sua lógica insurgente poderá nos fazer atravessar esse cenário.
Entretanto, as vísceras expostas do nosso mercado de trabalho e do desfazimento de nossa estrutura de regulação pública trabalhista requerem que a radicalização dessa solidariedade nos conduza, para além de sobreviver a essa crise, a repensar e reivindicar novas políticas de promoção do trabalho digno e protegido face ao iminente colapso da economia brasileira.
(*)Renata Queiroz Dutra é professora adjunta de Direito e Processo do Trabalho da UNB (Universidade de Brasília). É doutora e mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB.