A reza de Uirapuru
Como será que foi esse dia remoto e esquecido na memória da civilização e que mudou a história da humanidade? Esse dia em que um indivíduo sentiu vontade de falar com alguém que simplesmente não existia, um alguém que não era nem ele mesmo, nem ninguém que ele conhecia, nem ninguém em particular? Como foi esse dia em que lhe passou pelo espírito algo tão inesperado, tão absurdo, que sentiu-se infinitamente sozinho, por não ter com quem falar sobre o que lhe ia na cabeça, no coração e no corpo?
Como será que foi esse dia em que o primeiro ser humano teve que inventar uma oração, para dar conta do que havia pensado ou sentido?
Esse infeliz, esse pobre coitado, que não sabia rezar, que não tinha religião, nem deus, nem igreja, nem texto sagrado, e talvez nem tivesse palavras, como ele fez para orar?
O que dizer nessa oração? Por onde começar? Conto tudo? Não conto nada? Conto em que ordem? E para quem? Em voz alta? Ou em silêncio?
Como será que foi esse dia tão distante na história de nossa espécie, em que um indivíduo, estarrecido com os seus próprios pensamentos, sentiu a necessidade de inventar uma pessoa só para si? Só para que essa pessoa ouvisse o que ele ou ela tinha a falar? Uma pessoa que fosse capaz de lhe entender?
Até que a coisa ganhasse forma, a forma se tornasse tradição e a tradição virasse liturgia, a ponto de nem mais se pensar no que se está falando numa oração - “Pai nosso que estás no céu….” - os oradores devem ter penado para falar sobre essas coisas indizíveis que nos ocupam a mente e o corpo.
Não sabemos quando nem como foi esse dia, nem quem foi essa pessoa. Mas, por causa dela, aprendemos a rezar, a imaginar alguém que nos ouve e nos entende e, com alguma sorte, nos perdoa.
E hoje, milênios depois desse acontecimento irreconstituível, quando pensamos ou sentimos algo que não conseguimos contar direito nem para nós mesmos, nem para os outros, nos metemos a orar.
E aqueles entre nós que não aprenderam a rezar numa igreja, que não foram ensinados a rezar numa religião, que não repetem as fórmulas dos livros sagrados, se vêem diante do mesmo constrangimento daquele primeiro indivíduo, sentindo a solidão longínqua daquele dia perdido na memória da humanidade.
O livro Uirapuru, de Febraro de Oliveira, é uma oração. Uma oração feita por um personagem que carrega em si algo de insuportável. Um personagem que não tem um Deus para quem orar, nem uma religião, nem um texto sagrado que lhe ensine a fórmula para ser ouvido.
Então o personagem fala e grita, e cala, e conta, tentando encontrar nas próprias palavras a sua reza. Fala com o pai e com a mãe, que já não existem. “Mãe minha, você me perdoa?”… “Me escuta, pai, o que você disse?”. Fala com um alguém que nunca existiu e talvez nunca existirá: “Quero um rosto sem nome a mim, quero um rosto nonada, um rosto nonoutro, mas meu. Eu quero um rosto que seja um rosto, um rosto que vá além das fronteiras imaginárias. Eu quero um rosto – apenas”. Elabora uma forma tentado dar-lhe alguma liturgia: Inventando uma reza só sua. Invocando um céu, criado por quem nunca viveu nada similar ao paraíso, um céu mais humano que divino: “mas o céu em Uirapuru. (…) Uirapuru, número três dois cinco. Quarta casa, ou terceira, não me lembro. CEP setenta e nove zero quatro zero vinte”.
O personagem, nessa longa oração que é o livro Uirapuru, conta seus pecados sem saber se são mesmo pecados, sem saber se são mesmo perdoáveis, indagando se há algum perdão possível. “De onde vem a culpa que carrego, mãe minha? (…) Mãe minha, você me perdoa?”.
Porque se a oração inventar um perdão, é porque há pecado. Essa é a natureza perversa da reza. Mesmo que não exista pecado, mesmo que nada daquilo nunca tenha sido ofensa nenhuma, a oração inaugura o pecado, e aquilo que nunca teve nome e quem nunca teve culpa, de repente, é perdoado.
O personagem vai inventando aos poucos essa reza. As palavras e os sons vão se repetindo, os pecados vão se formando passo a passo com as formulações de perdão. Até que, ao final, o personagem ora, como oramos depois que aprendemos a oração… num fôlego só, sem respirar, sem pausas nem pontuação.
“(…) a culpa a culpa toda queimando também eu quero que tudo queime eu quero o verbo a se repetir até todas as coisas ferirem o ar de Uirapuru rua nossa de nascimento e morte e pego a gasolina a casa toda molhada pai nosso que estais no céu”.
Há um debate entre os leitores de Uirapuru sobre o gênero do livro… se são contos, se é um romance, se é poesia.
Eis aqui uma hipótese alternativa. Uirapuru é uma reza. Inventada por quem não foi ensinado a rezar.
(*) Henrique Komatsu é escritor, autor do livro “Ototo”.