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A simbólica do contaminado: Subgramáticas pandêmicas

Gillianno Mazzetto (*) | 10/05/2020 19:00

Cada vez mais o número de contaminados pela Covid-19 tem crescido ao nosso redor. Agora, aquilo que era do âmbito da especulação e parecia ser uma distante ideia começa a se aproximar e a gerar pânico e ansiedade nas pessoas.

Contudo, uma das peculiaridades das epidemias e pandemias, ou do próprio aspecto do mal e da doença é que elas não abarcam apenas a dimensão biológica e fisiológica da infectologia. Elas trazem consigo uma simbólica ligada à três ideias básicas: a ideia de mal, a de sujeira e a de culpa. Sim, como podemos ver, ideias também infectam!

Umas das grandes questões que, durante boa parte da história humana, para não dizer de toda ela, vem inquietando-nos é a pergunta: Qual a razão do mal? Qual a sua origem? Há nele um sentido?

Em tempos pandêmicos isso fica mais acentuado, pois, o mal, que em outros momentos pode ser entendido como mal social, mal econômico, mal religioso, nestes dias tem se acentuado sob a forma do mal físico, mal do corpo, mal que atenta contra a materialidade da vida.

Isso produz como um dos efeitos uma simbólica do mal, comumente ligada a ideia de proteção e desproteção ou, melhor ainda, de exposição ou não a ele. Estas representações se expressam de forma bastante contundente na articulação dos binômios puro-impuro, limpo-sujo, contaminado-descontaminado. Por que vocês acham que associamos, por exemplo, a ideia de branco à de pureza, limpeza?

Ao tratarmos de doenças, e principalmente doenças infecciosas, como é o caso da Covid-19, isso se acentua sobremaneira pois qualquer pessoa que espirre perto de nós, ou ainda, tenha sido testada positivo com o novo coronavírus e mesmo depois de se submeter a quarentena e estar, "biologicamente curada" poderá ser alvo do nosso olhar desconfiado e, em alguns casos recriminatório.

Entretanto, por que isso se dá? Paul Ricoeur, um filósofo francês, nos ajuda a entender tal realidade afirmando que há uma simbólica do mal que precisa ser considerada. Essa, órbita a ideia de mancha, de pecado, de finitude e de culpabilidade. Parece complexo? Vamos explorar algumas destas ideias.

Comenta ele: "Existem duas características arcaicas, objetiva e subjetiva, da mancha: algo que infecta, um temor que antecipa o desencadeamento da ira vingadora da proibição. (Ricoeur, 2004, p. 197).

Exploremos a primeira: "Algo que infecta". Em se tratando de uma pandemia como a da Covid-19 esta dimensão fica cada vez mais notória, pois, por se tratar de uma contaminação a ideia de mancha e de sujeira são realçadas como que se aquele que estivesse com o novo coronavírus fosse alguém sujo que precisasse ser limpo, necessitasse passar por um processo de purga.

Tais elementos se tornam mais evidentes e parecem ser reforçados, ainda que não de maneira intencional, pelas estratégias de tratamento e contenção do contágio tais como, isolamento social, quarentena preventiva, etc. Do ponto de vista biológico, estes protocolos e procedimentos visam mitigar a disseminação do vírus, porém, do ponto de vista da representação elas são entendidas como mecanismos purgativos. O vírus é visto como uma sujeira que precisa ser evitada. Explorar esse caminho pode ser uma oportunidade para promover uma educação ao simbolismo da mancha e, por sua vez, uma educação infectológica.

A título de exemplo de como esse mecanismo opera recordo-me quando pequeno, ao irmos ao cemitério no dia de finados, ao chegar em casa, tínhamos que tirar a roupa, colocá-la para lavar e tomarmos banho. Algo semelhante ao que muitas famílias hoje fazem como medidas protetivas a Covid-19.

Não obstante, a mancha produz como um dos seus resultados a culpabilidade daquele que foi manchado comumente expressa sob a forma de preconceito. Um exemplo clássico dos nossos dias é que, ainda hoje, apesar de toda a informação e das campanhas de conscientização as pessoas soropositivas de HIV sofrem preconceitos, mesmo sabendo que os meios de contaminação desta enfermidade são bastante específicos.

Uma outra dimensão da culpabilidade se dá no âmbito da punição simbólica atrelada a ideia de doença. Explico-me. Para muitas pessoas ficar ou não doente é sinal de punição ou proteção divina, ou ainda resultado de um desvio moral. Isso fica mais forte em nossa sociedade, bastante influenciada pela visão cristã de culpabilidade e pecado, na qual, a relação entre, pecado, vergonha, sujeira e culpa são quase que correlatas. A título de ilustração é comum por estes dias escutar o seguinte discurso: "eu acredito em Deus!" Como se este fato garantisse a imunidade da pessoa.

Diante disso, parece-nos que os efeitos pandêmicos não se dão apenas de ordem biológica e psíquica, mas há também uma dimensão simbólica representacional envolvida. Esta dimensão quando seriamente considerada pode oferecer às autoridades um manejo mais consciente das variáveis independentes que influenciam no processo de gestão da pandemia.

(* ) Gillianno Mazzetto é pró-reitor de Desenvolvimento Institucional da UCDB e doutor em Psicologia

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