A soja no Brasil é movida por inovações tecnológicas
A soja (Glycine max (L.) Merrill) tem centro de origem no nordeste da China (entre 45 e 50º N), latitude que, nas Américas, corresponde no sul à Patagônia e, no Hemisfério Norte, ao norte dos Estados Unidos e sul do Canadá. Existem citações, sem o devido fundamento histórico, de que a soja teria sido utilizada como alimento em tempos imemoriais. A literatura não menciona nenhum vestígio da leguminosa em qualquer sítio de investigação arqueológica do Neolítico, no norte da China, e os principais estudiosos concordam que apenas as datas depois de 1100 a.C. podem ser aceitas como precisas na história da soja.
A introdução da soja no Ocidente ocorreu em latitudes similares ao centro de origem, iniciando pela Europa em 1712. O primeiro relato sobre cultivo de soja nos Estados Unidos é de 1765. Embora lentamente, a soja se expandiu no país, exigindo investimento em pesquisas que propiciaram um desenvolvimento tecnológico que redundou em cultivares produtivos e resistentes a doenças, em um sistema produtivo adaptado às diferentes condições de produção norte-americanas.
Em 1882, Gustavo D'Utra efetuou o primeiro cultivo de soja no Brasil. Empreitada que fracassou posto que o material genético, desenvolvido para climas frios ou temperados, não se adaptou às condições da Bahia. Em 1891, cultivares foram testadas no Instituto Agronômico de Campinas (IAC-SP). Porém, a efetiva trajetória de sucesso da produção comercial de soja tem início no Rio Grande do Sul, de 1920 a 1940. Antes disso, em 1901, o professor Guilherme Minssen, da então Escola Superior de Agronomia e Veterinária, atualmente vinculada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), iniciara pesquisas com a leguminosa.
Transformação pela ciência
Na década de 1970, o esforço de PD&I ganha dimensão e sofisticação crescentes, envolvendo uma plêiade de atores, tanto públicos, quanto privados. O primeiro desafio foi produzir cultivares para as condições subtropicais e tropicais do Brasil, para substituir as importadas dos Estados Unidos, as quais até se desenvolviam razoavelmente no sul. Ocorre que a pressão de demanda do comércio internacional indicava que a soja não ficaria apenas confinada lá.
As cultivares norte-americanas não cresciam adequadamente aqui, inviabilizando o comércio. O cerne do problema estava na indução floral, determinada pelo comprimento do dia (fotoperíodo), característica controlada geneticamente. Foi somente após introduzirem o atributo de período juvenil longo que a soja conseguiu se expandir com segurança para as outras regiões.
Durante este período, a planta não floresce, mesmo que as condições de fotoperíodo estejam presentes. Só assim é possível que a planta cresça e se desenvolva, forme biomassa em volume adequado e expresse altos rendimentos. Essa descoberta representou uma quebra de paradigma em escala global, pois nunca antes havia sido possível cultivar soja com sucesso, em regiões tropicais.
O desafio do cerrado
A chave tinha entrado na fechadura, mas abrir as portas da vastidão do cerrado para a soja exigia mais pesquisa científica, pois os solos são ácidos e de baixa fertilidade. Foi necessário viabilizar fórmulas factíveis de correção das características químicas, para propiciar condições nutricionais ideais. Atualmente, existem recomendações de adubação específicas para cada região e para diferentes patamares de produtividade.
O nitrogênio é um dos elementos químicos essenciais para o desenvolvimento da planta. Entrementes, se a sua adição ao solo ocorresse na forma de fertilizante químico, seu custo poderia inviabilizar ou, ao menos, limitar fortemente a produção da soja. Uma rede de cientistas e de instituições desenvolveu a tecnologia de fixação simbiótica do nitrogênio na soja, que envolveu desde a identificação de estirpes de Bradyrhizobium japonicum - a bactéria que fixa o nitrogênio do ar e o transfere para a planta de soja - até formulações adequadas para uso em condições tropicais.
Um dos gargalos iniciais foi a produção de sementes de alta qualidade, em condições adversas, sob alta temperatura e regime de chuvas inadequado. Foi elaborado um complexo sistema, com condições propícias de processamento e de conservação das sementes, para que o produtor as recebesse dentro dos padrões de qualidade exigidos, em especial vigor e capacidade germinativa.
O preparo de solo baseado no uso de arado e grade, com intenso revolvimento do solo, adequado para o Hemisfério Norte, significava um desastre econômico e ambiental nas condições tropicais brasileiras, erodindo rapidamente a camada superficial das áreas agrícolas. Foi esta a motivação para o desenvolvimento do sistema de plantio direto na palha, hoje utilizado em cerca de 90% da área de cultivo do Brasil, que permite o cultivo da soja e de outros grãos, sem o revolvimento frequente do solo.
O sistema permite a incorporação de matéria orgânica, a fixação de parte ponderável do carbono absorvido pelas plantas e a formação de uma cobertura de palhada sobre o solo, com efeitos benéficos para a microfauna e a microflora do solo, bem como colaborando para o controle térmico e a manutenção da umidade.
Uma soja para o Brasil
Em climas temperados ou frios, embora seja hospedeira de diversas pragas, a soja não é tão sujeita a estresses que limitem sua produtividade quanto em climas tropicais. Para solucionar a questão, tecnologias foram desenvolvidas e, sem dúvida, a mais importante, foi incorporar às cultivares características genéticas de tolerância ou resistência a vírus, bactérias, fungos e nematoides.
Contudo, a diversidade das pragas e a intensidade de sua infestação e de seus danos exigiam inovações tecnológicas para contornar as ameaças fitossanitárias. Sistemas de manejo de plantas invasoras foram desenvolvidos, culminando com a incorporação da resistência genética da soja à herbicidas de largo espectro, pela via da transgênese. A mesma ferramenta foi utilizada para incorporar resistência a insetos desfolhadores, inserindo no genoma da soja um gene que expressa uma proteína letal para esses insetos.
O manejo de pragas da soja alia conhecimento da biologia e ecologia das pragas e de seus danos com técnicas de controle, que inclui manejo da cultura, controle biológico e químico, além de conceitos como nível econômico de danos. Espécies de fungos mais agressivas, como o causador da ferrugem da soja, são controlados com um conjunto de técnicas que abrange o vazio sanitário - a proibição de cultivo da soja por um período de 60 a 90 dias durante a entressafra -, uma rede de monitoramento, diagnóstico e alerta e a recomendação de medidas de controle mais eficientes.
O manejo adequado do solo, a correção do seu perfil, a porosidade e microestrutura do solo, o teor de matéria orgânica, a ausência de camadas compactadas exigiram tecnologias que permitissem um ambiente ideal para o crescimento das raízes da soja e para a rizosfera e que também favorecesse os microrganismos benéficos.
Ao longo da história da soja no Brasil assistimos a uma dupla pressão. A primeira, do mercado internacional, exigindo produção maior a cada ano. A segunda, a necessidade de produzir com o menor impacto possível sobre o ambiente. Além das tecnologias expostas - desenvolvidas sob a ótica do menor impacto ambiental - algumas técnicas atendem especificamente esses quesitos. Por exemplo, o sistema de integração lavoura, pecuária e floresta (ILPF) consolida esta preocupação, assim como a intensificação da agricultura, com a sequência de duas ou três safras de grãos (por exemplo, soja, milho, algodão ou feijão), ou mesmo de uma pastagem que ocupe o solo na entressafra, o que reduz a pressão por expansão de área.
A trajetória não se encerra no presente. Temos sempre novos desafios, exigindo dedicação permanente dos cientistas para romper barreiras e quebrar paradigmas, sempre com o foco assestado na sustentabilidade dos sistemas de produção de soja no Brasil, lastreados na melhor ciência e tecnologia.
(*) Decio Luiz Gazzoni é Membro do Conselho Científico Agro Sustentável, Engenheiro Agrônomo e pesquisador da Embrapa Soja.