Ações afirmativas e a construção da universidade inclusiva e intercultural
A Lei de Cotas irá completar uma década de vigência neste ano. Desde a sua instituição em 2012, ela foi responsável por promover uma mudança no perfil socioeconômico e étnico-racial do corpo discente das instituições federais de ensino superior. Contudo, apesar das conquistas no campo das ações afirmativas, ainda há muito o que avançar na inclusão, assistência e permanência estudantil dos cotistas.
As ações afirmativas compreendem um conjunto de medidas que visam promover reparação histórica e cultural a grupos sociais subalternizados em virtude da persistência do racismo, da discriminação e das desigualdades sociais, processos que atravessam as relações sociais no Brasil. Os compromissos assumidos pelo país na Conferência de Durban em 2001 e a constante luta dos movimentos sociais, especialmente do Movimento Negro, foram fundamentais na discussão e formulação de políticas de cotas nas universidades públicas. Registre-se que o Estatuto da Igualdade Racial foi criado somente em 2010.
Neste campo de política pública, a Universidade de Brasília foi pioneira na adoção de cotas étnico-raciais a partir do vestibular do segundo semestre de 2004. A experiência exitosa nos cursos de graduação, embora tenha enfrentado resistências dentro e fora da universidade, contribuiu decisivamente para pautar as ações afirmativas no seio da sociedade brasileira. A partir de 2014, a política de cotas étnico-raciais na UnB passou a ser combinada com a normativa de cotas sociais do programa federal. Com o advento da Portaria MEC nº 13/2016, as ações afirmativas passaram a ser implementadas nos cursos de pós-graduação. Na UnB, a Resolução CEPE nº 44/2020 instituiu a política de cotas para a população negra, indígena e quilombola.
Estas políticas foram primordiais para o processo de democratização do acesso ao ensino superior. Todavia sabemos que o ingresso é a primeira parte do desafio para os cotistas, pois a permanência deles tem sido ameaçada por constantes cortes orçamentários nas áreas da educação superior e da ciência e tecnologia, alvos prioritários do governo federal nas tomadas de decisão relativas aos cortes. Somam-se a isso os impactos da pandemia sobre as condições de vida, trabalho e recursos dos estudantes e de suas famílias.
Sabemos ainda que sem a inclusão de pessoas LGBTQIAPN+ e, demais identidades, o ambiente acadêmico permanece desigual. Entendemos que o diálogo entre distintos saberes tem proporcionado uma formação mais diversa nas universidades públicas. Contudo, as ações afirmativas revelam o quanto as instituições de ensino seguem caracterizadas por desigualdades e conflitos, mostrando-se distantes de reconhecer outras corporalidades e saberes em seus espaços. Tome-se como exemplo a instituição de cotas para pessoas trans, pelo fato de não haver uma resolução da UnB que estenda a esse grupo o direito de acesso aos seus cursos e programas. O que percebemos são ações pontuais, embora importantes, em programas de pós-graduação.
Além disso, a formação dos discentes com qualidade, uma vez que a exigência das universidades públicas é alta, conclama uma discussão por políticas de auxílio, cuidado, permanência e formação assistida dos cotistas. Não devem, no entanto, serem embasadas majoritariamente por critérios socioeconômicos. Essas políticas devem ser pensadas de maneira a considerar as evidentes intersecções de classe, raça, gênero e sexualidade, entre outras categorias. Por isso são urgentes e necessários dados oficiais sobre o perfil universitário, tanto na graduação quanto na pós, para identificação de desigualdades e apoio na elaboração das formas de combatê-las, nomeadamente, por meio de programas de inclusão e diversidade.
Precisamos estar atentos e mobilizados para que a revisão da Lei de Cotas pelo Congresso Nacional não sofra retrocessos e não venha a pôr em risco essa conquista da sociedade brasileira. É fundamental que o programa federal de ações afirmativas seja aperfeiçoado para assegurar o acesso e a permanência de grupos e identidades sociais invisibilizadas. Essa luta deve ser perene e coletiva; uma luta por transformar as nossas universidades em um ambiente inclusivo, diverso, transcultural e de respeito mútuo entre corporalidades e saberes pluriversos. Afinal, a universidade pública é uma das arenas essenciais para o cultivo e a difusão de valores democráticos e interculturais
(*) Leonardo Ângelo de Araújo Andrade é doutorando em Ciências Sociais no Departamento de Estudos Latino-Americanos (ELA/UnB).