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Agora é hora de enfrentar as desigualdades reveladas em 2020

Eunice Prudente (*) | 22/12/2020 13:41

O direito é uma ciência social aplicada que deve expressar o sentido do justo, do melhor para a sociedade (para todas as classes sociais). Ousadamente adentra ao mínimo ético da sociedade e acolhe comportamentos, valores, bens para resguardá-los e, note-se, em nome de todos, em princípio protegendo o que for importante a todos. Disso se impõe a seus profissionais, aplicadores do direito (advogados, magistrados, procuradores), e também aos juristas, pesquisadores e administradores públicos a humildade inteligente de buscar sempre entendimentos, interlocuções com as demais ciências e áreas do conhecimento, valendo-se da política de dados e informes abertos como determinado pelo acordo público expresso pela Constituição Federal. Interseccionando informações, condições e, assim, descortinando realidades. O direito posto é o necessário, adequado? Devem-se criar novas normas? A aplicação do direito segue a partir de interpretações dependentes de avanços/demonstrações de múltiplas ciências.

A história e a filosofia nos relatam importantes revoluções de ideias que, desnudando o poder, expressam suas principais funções e objetivos, sobretudo em ambiente democrático onde o titular é o conjunto de todos os cidadãos. Cabe às instituições públicas no exercício do poder – Legislativo, Executivo, Judiciário, Ministério Público – elaborar, interpretar e aplicar o direito, de frente e no interesse de todos.

A sociedade brasileira expressa pelos movimentos sociais bradou unida contra a ditadura, “O Povo unido jamais será vencido” e conquistou-se a atual Constituição que apresenta a República Federativa do Brasil, como Estado Democrático de Direito com objetivos inclusivos, reconhecendo ocorrências de desigualdade socioeconômica, sexismo, racismo e outras formas de discriminações violentas no Brasil e posicionando-se contras as discriminações, criminalizando-as mediante elaboração de leis e demais atos normativos necessários.

Mas é notório que o Estado Democrático encontra-se em construção, e o gargalo está no Executivo (prefeitos, governadores, presidente da República), na instituição e execução de políticas públicas (pesquisas de dados e informes, IBGE, Ipea, programas com prazos respeitáveis, planejamentos estratégicos e financeiros  (vide estudos de BUCCI, Maria Paula Dallari), posto que esta República não é pobre, mas injusta, face aos níveis de concentração de rendas e terras detidos por menos de 10% dos cidadãos (vide relatórios do Ipea). A formação da propriedade privada a partir de escravização durante 400 anos e a falta de políticas de inclusão, algumas só recentemente iniciadas, deixaram à deriva do desenvolvimento a maioria dos brasileiros (53%), os negros descendentes dos escravizados, situação que, por sua vez, moldou formas de discriminação étnica violentas que se observam no Brasil.

As instituições públicas também discriminam na medida em que não atentam a estas realidades; a igualdade formal está no direito posto, mas a igualdade substantiva necessita ser construída dia a dia mediante percepção de diferenças. Sendo também visível que responsáveis pelas funções do poder ainda se prendem ao binarismo de gênero, invisibilizando pessoas transgêneras, não atentando à discriminação racial no mercado de trabalho que vitima o negro, nem aos níveis de violência doméstica familiar contra mulheres. Observe-se o Brasil nos rankings de violência contra mulheres, crianças, cidadãos negros. Não há compromissos oficiais com as igualdades de oportunidade nem no combate à violência de gênero e raça, e governantes brasileiros optam pela necropolítica (vide I. Mbembe). Optam pela política do punitivismo, inspirado no Estado inquisidor, sendo o Brasil o terceiro Estado que mais encarcera pessoas, com uma população carcerária integrada por maioria de jovens pobres e negros. São jovens pretos e pardos das comunidades das periferias das cidades brasileiras. Se atentarmos para a idade, o Brasil ultrapassaria a China e os Estados Unidos.

Sabemos o Estado de Justiça que precisamos. Mas que Estado Democrático de Direito estamos construindo? Onde está a implementação das políticas públicas pelos governantes?

Chegou 2020 e uma crise sanitária instalou-se no mundo, inesperada, ceifando milhões de vidas em todo o mundo. A covid-19.

A crise promove mudanças bruscas levando a rupturas do staus quo. Na origem, o pensamento grego lembra-nos momento decisivo para novo tempo, mas precedido de muita maturação. Mas no Brasil desconhece-se o pensamento platônico, aliás nem o comunismo platônico, mas Platão refletiu, “não se espera por uma crise para descobrir o que é importante em sua vida”.

É, realmente não nos preparamos para enfrentamentos de crises, e a covid-19 aflorou as desditas aqui narradas, da desigualdade socioenonômica ao racismo estrutural (vide ALMEIDA, Silvio). Nem ouvimos o político tão respeitado entre nós, John Kennedy, que se referiu ao fato de que a palavra “crise”, quando escrita no idioma chinês, é formada por dois ideogramas, sendo um representando perigo e o outro representando oportunidade.

Temos no Brasil, até o dia 20 de dezembro, 186.764 mortos e 7.238.600 infectados, além de leitos hospitalares insuficientes.

Nossa conquista constitucional há mais de trinta anos, o Sistema Único de Saúde, o SUS, tem atribuições no Art. 200 da Constituição Federal, do controle e fiscalização de procedimentos, produtos, substâncias de interesse para a saúde; participação na produção de medicamentos e equipamentos; ações de vigilância sanitária e epidemiológica; formação de recursos humanos na área de saúde; formulação de política e execução das ações de saneamento básico, incrementar desenvolvimento científico e tecnológico; mas que precisa ser devidamente incrementado no Brasil continental nos municípios e Estados da federação.

Estamos inclusive assistindo a esta crise sanitária e à falta de diálogo entre órgãos federais da economia e da saúde. Imagine-se a dificuldade para normatizar o auxílio emergencial e a identificação via CPF, e muitos com CPF irregular, “perigo de fraudes, então não se paga”. Mas as pessoas estão perdendo emprego, as pessoas estão morrendo! Optou-se de início pelo punitivismo, dentre outras falhas governamentais.

O racismo aflorou com ações policiais violentas em comunidades, os negros moram lá. No momento das despedidas do emprego quem foi vitimado primeiro? Resultado: mais mulheres negras no trabalho informal, sem direitos sociais e parcos recebimentos. E crianças sem possibilidade de estudos remotos, via internet, em casa. Mas nossas crianças também se alimentam nas escolas e ficaram sem merenda escolar. Temos o grave déficit de moradias, as moradas nas comunidades além de insalubres não têm espaço para crianças estudarem nem acesso à internet. Nem a maioria das moradas tem espaço para isolamento de infectados, etc.

Não, absolutamente não estávamos preparados para enfrentamento de crises.

Mas se crise é também “oportunidade” é também descobrimentos de realidades, se é que alguém, sobretudo governante, desconhecia nossos dramas sociais.

“Bora” reconstruir o Brasil, com:

Real investimento na educação básica
• Formação dos professores pelas universidades públicas
• Zerar o déficit de creches

Enfrentamento da desigualdade socioeconômica
• Instituição de imposto sobre as grandes fortunas (art. 153, VII)
• Reforma agrária, com desapropriações de áreas rurais e organização de pequenas propriedades agrícolas
• Reforma urbana, com desapropriações e construções de casas, até zerar déficit de moradia
• Tratativas com o agronegócio para distribuição de alimentos

Enfrentamento do racismo
• Aplicação da Lei nº 7716, de 1989, decisões de arquivamento encaminhadas ao Conselho Nacional do Ministério Público e ao Conselho Nacional de Justiça
• Tratativas junto às corporações privadas para instituição de comissões internas sobre diversidade
• Aplicação de políticas de Ações Afirmativas conforme compromissos internacionais e legais assumidos
• Implementação do Estatuto de Igualdade Racial nos Estados e municípios


(*) Eunice Prudente é professora da Faculdade de Direito da USP e colunista da Rádio USP

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