Agricultura Familiar: reconhecimento crescente de suas múltiplas funções
Aaprovação da Década da Agricultura Familiar, entre 2019 e 2028, pela 72ª Sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas é bastante reveladora de perspectivas existentes para alavancar ações visando ao alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). A iniciativa da ONU foi fundamentada na concepção segundo a qual a agricultura familiar constitui um pilar muito sólido para a luta contra a fome e a pobreza; para a garantia de segurança alimentar e nutricional; para a proteção dos recursos naturais e, assim, para a promoção do desenvolvimento sustentável.
Esta orientação da ONU em favor da agricultura familiar se coaduna com interesses investigativos do Grupo de Pesquisa em Agriculturas Emergentes e Alternativas (Agremal), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ecologia Aplicada Interunidades (Esalq-Cena/USP). O grupo estuda particularmente o reconhecimento, as práticas, as estratégias e os valores de atividades agrícolas que se afastam do produtivismo agroalimentar. Assim, a apresentação das linhas centrais das abordagens deste nosso grupo de pesquisa nos parece pertinente para contribuir com a reflexão e debate sobre o lugar da agricultura familiar para o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Nas pesquisas realizadas pelos membros do Agremal, é frequentemente mobilizada a noção de multifuncionalidade da agricultura familiar (MFA), que nasce justamente no campo de debate sobre o desenvolvimento sustentável. Suas primeiras menções ocorrem na Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992. Mas a ideia de conceber funções da agricultura precede este momento. Nos anos 1970, o olhar sobre o papel da agricultura no Brasil se limitava a considerá-la como suporte ao desenvolvimento industrial. Nesta ótica, a agricultura deveria cumprir as funções de liberar trabalhadores no campo para que ocupassem postos de trabalho no mundo urbano-industrial em crescimento; de fornecer alimentos em abundância e baratos para que as famílias urbanas pudessem reduzir as despesas alimentares e destinar maior parte do orçamento familiar para aquisição de bens industriais de consumo; de ampliar o emprego de equipamentos e insumos industriais e, enfim, de transferir capital para o investimento no setor industrial.
Com o debate sobre as múltiplas funções da agricultura, a visão sobre os papéis da atividade agrícola se desloca para outras dimensões. Com este olhar, a agricultura contribui para a proteção ambiental, para a coesão social, para a oferta de alimentos saudáveis, para a incitação de um desenvolvimento territorial equilibrado, para a preservação de tradições agroalimentares, para a promoção da saúde, para a dinamização de economias locais, entre outras ideias formuladas em campo de debate bastante vigoroso e criativo.
Paralelamente, o grupo de pesquisa explora a teoria das justificações para a análise de estratégias e práticas da agricultura familiar, com interesse em aprofundar estudos sobre dinâmicas sociais que permitam reconhecimento, ou não, das múltiplas funções da agricultura. Em poucas palavras, a teoria das justificações parte do pressuposto de que existem diversas concepções de justiça com graus distintos de legitimidade no tempo e no espaço. Assim, oferece um repertório de referências de justiça que podem ser mobilizadas por diferentes atores visando ao alcance de legitimidade para suas causas. No debate agroalimentar, predominam justificativas fundadas em princípios de justiça industrial e mercantil, mas crescem argumentos ancorados em perspectivas ligadas, sobretudo, às ordens justas cívica, doméstica e ecológica.
Com efeito, se uma perspectiva de justiça industrial e mercantil constituiu a base da argumentação em favor da modernização da agricultura, oferecendo legitimidade, por exemplo, para concepções segundo as quais uma agricultura adequada para a sociedade contemporânea deveria cumprir funções subordinadas ao desenvolvimento industrial, como mencionado acima, o debate sobre a sustentabilidade e multifuncionalidade da agricultura permite considerar a emergência de princípios alternativos de justiça neste âmbito, particularmente aqueles ecológicos. Em grande medida, são estes últimos que sustentam os argumentos em favor da agricultura familiar nos dias de hoje, tornando-se cada vez mais importantes na reflexão sobre os meios para a atividade agrícola responder aos desafios do desenvolvimento sustentável.
A propósito, a evolução de significados associados à noção de segurança alimentar ilustra bem este tipo de mudança. Na década de 1990, ambiguidades em torno dessa noção, que podia ser mobilizada tanto para a defesa de uma perspectiva produtivista-industrial quanto para sustentação de uma ótica multifuncional favorável à agricultura familiar, levaram a Via Campesina, organização internacional de representação de agricultores familiares, a levantar a bandeira da “soberania alimentar”. Tratou-se de defender medidas inequívocas com vistas ao fortalecimento da agricultura familiar camponesa (em razão de suas múltiplas funções) para alcançar objetivos tanto de abastecimento alimentar como de combate à pobreza e à fome. No Brasil, desde a reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), em 2003, é bastante evidente a predominância de uma perspectiva de segurança alimentar com ênfase em soberania. Tal ótica é explicitada, por exemplo, na Lei nº 11.346/2006 (LOSAN), na qual, em seu artigo quinto, é prescrito que “a consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional requer o respeito à soberania, que confere aos países a primazia de suas decisões sobre a produção e o consumo de alimentos”.
Entre as diversas ações concebidas no âmbito do Consea, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) constitui um modelo representativo de segurança com soberania alimentar. Trata-se de uma forma de diversificação do apoio público à agricultura familiar, combinando sua sustentação com o socorro alimentar de famílias em situação de vulnerabilidade social. O PAA apresenta uma série de inovações robustas em termos de dispositivos de políticas públicas no âmbito agroalimentar. Sua regulamentação simplificou a aquisição, por meio de chamadas públicas, de alimentos provenientes da agricultura familiar, o que contorna uma barreira importante para que agricultores organizados em associações e cooperativas possam acessar os mercados institucionais. Ademais, suas normas estabelecem que os produtos agroecológicos ou orgânicos podem ter um acréscimo de até 30% (trinta por cento) em relação aos preços dos alimentos convencionais, o que representa outra orientação favorável ao cumprimento de múltiplas funções da atividade agrícola.
Este programa constitui um meio extraordinário para responder aos problemas de insegurança alimentar, agravados com o advento da pandemia de covid-19. Porém, assistimos nos últimos anos ao desmonte do PAA e do conjunto dos dispositivos de políticas públicas direcionadas à agricultura familiar. A propósito, a extinção do Consea nos primeiros atos do atual governo federal é reveladora deste desengajamento estatal, com o fechamento das portas para a participação social na concepção e gestão das políticas públicas de segurança alimentar. Tais medidas representam em última análise escolhas em direção contrária àquelas desejadas para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Neste quadro, os pesquisadores do Agremal estão comprometidos com a organização de um livro a partir da compilação de diferentes resultados de pesquisas que evidenciam as múltiplas funções da agricultura familiar, podendo contribuir assim com a reflexão e debate com vistas ao alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Com vocação de fomentar o debate em torno da Década da Agricultura Familiar, a referida publicação está prevista para ser lançada no primeiro semestre de 2022, abordando temas relevantes no campo agroalimentar, tais como: o agravamento da fome no Brasil; padrões sustentáveis de produção e consumo; soberania e segurança alimentar; políticas públicas; manejo e conservação da agrobiodiversidade; agricultura urbana e mercados alimentares alternativos.
(*) Paulo Eduardo Moruzzi Marques é professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP.
(*) Fábio Frattini Marchetti é pesquisador do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão Universitária em Educação e Conservação Ambiental da USP.