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Alimentação, normas e a controvérsia sobre o novo rótulo frontal brasileiro

Vitória Giovana Duarte (*) | 15/10/2021 08:10

Alimentar-se é, para nós, mais do que simplesmente fornecer ao nosso corpo o que ele necessita. Precisamos confiar naquilo que colocamos no nosso prato, ou seja, comemos tanto com a mente quanto com a boca. As mensagens nos rótulos, como as alegações nutricionais sobre a composição do alimento, são relevantes e servem para ganhar a nossa confiança. Elas também afetam a nossa noção sobre a saudabilidade do produto, buscam influenciar escolhas sobre o que comemos e têm a capacidade de contribuir para escolhas alimentares mais saudáveis.

Por isso, as definições de normas alimentares são palco de disputas e envolvem diferentes interesses, formas de perceber a regulação do mercado e percepções do que constitui um alimento saudável por parte de movimentos de consumidores, de representantes da indústria e de profissionais da saúde.

O Brasil, que foi um dos primeiros países do mundo a tornar obrigatória a rotulagem nutricional nos alimentos industrializados e é mundialmente reconhecido pela versão mais recente do seu Guia Alimentar para a População Brasileira (o qual recomenda explicitamente que produtos processados sejam evitados), ficou anos sem realizar uma revisão sistemática dessas normas.

Em 2014, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) passou a discutir a inserção de rótulos nutricionais na parte frontal das embalagens, os quais deveriam avisar os consumidores sobre os alimentos com altos níveis de nutrientes associados às DCNT (Doenças Crônicas Não Transmissíveis), assim como alterações nas normas de rotulagem vigentes. Durante a controvérsia acerca das propostas levadas à agência, surgiram dois atores que adotaram posições divergentes e que se destacaram: a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, formada por organizações da sociedade civil, e a Rede Rotulagem, uma organização do setor produtivo de alimentos e bebidas.

A Aliança propôs o modelo de “alerta” em forma de triângulo que sinaliza o alto teor de açúcar, sódio e gordura saturada, enquanto a Rede defendeu o modelo do “semáforo”, que atribui cores (vermelho, amarelo ou verde) para classificar o teor de cada um desses componentes. Segundo os estudos analisados pela agência, os diferentes modelos de rótulos frontais de alerta demonstraram superioridade em comparação ao de semáforo em diversos quesitos.

No final de 2020, essa controvérsia teve um desfecho quando a Anvisa optou por um modelo de alerta único, que não havia sido indicado por nenhum dos atores, em forma de lupa e que está mais próximo da preferência apresentada pelos grupos da indústria para estampar a embalagem dos alimentos que tiverem alto teor de açúcar, sódio e/ou gordura saturada na sua composição. O modelo aprovado é diferente daquele apresentado em 2019 ao público: ele é bem menor que o “original”.

A adoção de um rótulo frontal que adverte o consumidor sobre a quantidade excessiva de nutrientes nocivos à saúde também é um meio de incentivar a indústria a reformular as composições dos seus alimentos processados para que elas apresentem menos desses nutrientes, a fim de evitar que as suas embalagens contenham esses avisos e façam o consumidor questionar a compra daquele produto. Embora o rótulo nutricional frontal seja uma reivindicação dos grupos da sociedade civil para tentar alertar a população sobre o nível real de saudabilidade de alimentos com processamento, isso não impede que representantes da indústria participem dessa disputa, visando que seus interesses sejam atendidos ou pelo menos tentando fazer com que uma solução mais favorável a eles seja adotada.

O que quero afirmar com isso é que não existe nada de “natural” ou meramente “técnico” no caminho percorrido pela Anvisa até sua decisão. A partir dessa controvérsia, podemos perceber as interferências de grupos políticos cujas disputas acerca da alimentação e das suas normas fizeram com que a sua revisão se tornasse parte da agenda da agência e interferiram nas suas decisões ao longo do processo.

As normas de rotulagem têm o potencial de moldar as relações entre os consumidores e as suas escolhas alimentares. Por isso, ao incluir o rótulo frontal nos alimentos processados e ao escolher o modelo utilizado nesses rótulos frontais, não são apenas as regulamentações dos produtos que estão sendo definidas, como também as relações de consumo e práticas de produção de alimentos.

(*) Vitória Giovana Duarte  é aluna de graduação em História na UFRGS.

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