Aprendendo a ser professor de História
Quando imaginei escrever sobre a apresentação do memorial da minha vida acadêmica para progressão na carreira, pensei no tempo como uma grande senhora. Imaginei uma grande mãe, envolvente, originária, que faz reluzir, mas que nunca se deixa apagar. Dona de uma potência que se reparte, se modifica e se diferencia, mas que nunca diminui, tal como a Dona Margarida, minha mãe, que sempre espalhou amor – e quando supúnhamos que aquele amor havia acabado, ela vinha com muito mais.
O tempo, por mais que tentemos a discipliná-lo, amordaçá-lo, pará-lo, ultrapassá-lo, demarcá-lo, alinhá-lo, nunca se deixa capturar; sempre recuado, é condição para o pensamento e a imaginação.
Bem, foi o tempo que me perseguiu, essa Senhora da vida. Foi ele (ela) que me fez perguntar como cheguei até aqui, depois de ter entrado na UFRGS em 1988. Agora refaço a pergunta: como nós chegamos até aqui?
Chegamos até aqui porque nos permitimos imaginar, artistar, viver, reviver, resistir, alegrar, sofrer, sim, mas também amar. Não foi por substantivos ou adjetivos, mas por verbos que produziram encontros que encheram a vida com mais vida. Soubemos criar e inventar mundos não supostos pelas garras afiadas do presente-prisão, do presente-contexto, do presente eterno (ladrão do passado e do futuro).
E chegamos até aqui por aprender, a duras penas, é verdade, que aprender história é um pouco viver no plano de uma poética e de uma paixão que nos dispõe a, de uma só vez, silenciar o caráter universal de nossas crenças e fazer cessar, por alguns momentos, o rugido da prisão do presente.
Depois de muito tempo, me dei conta de que cheguei até aqui por um movimento de encontros, parcerias, compartilhamentos, misturas de vida, de trabalho, de criação, de problematizações, de perdas, de sofrimentos, de erros, de equívocos, de imensas dificuldades, de tristezas, mas também de alegrias.
Com este texto, homenageio as incríveis parcerias que me fizeram acreditar que aprender, conhecer, criar, escrever, ensinar, orientar não são práticas solitárias nem produtos de uma arrogância e de uma prepotência acadêmicas, mas são formas de vida, modos de vida que fazem aparecer ideias, conceitos, aulas de História, no mundo.
Pude, depois de me tornar capaz de escutar, talvez nem tanto quanto deveria, derrubar as pesadas estruturas da solidão (acadêmica, neste caso, mas de outras também) e saborear a leveza da criação “com”, “junto”, “amigavelmente”, “alegremente”.
Os artigos, os livros que escrevi, as aulas que dei, as homenagens que recebi são efeitos desses compartilhamentos, dessas amizades, desses modos de vida construídos por um caminho de encontros, efetivamente, alegres.
Muitos gritaram para que eu escutasse, e seus gritos me abriram mais para a escuta, para poder captar os murmúrios de quem gritava e não era ouvido, de quem nunca teve permitida sequer a fala (inclusive em minha sala de aula). Não sei se ainda escuto todos os seus murmúrios, mas hesito e, ao hesitar, posso escutar mais.
Foi com essa abertura de escuta, que implicou certo silêncio das coisas todas que nos fazem (que me fazem) orgulhosos de sermos identificados como “nós mesmos”, que pudemos pensar que as aulas de História desequilibram as formas cristalizadas de pensamento; têm enfrentado os universalismos; têm resistido às tentativas de silenciamento dos seres e dos modos de vida.
O tempo não é linha. O tempo não é cronologia. O tempo não é nada do que dele podemos dizer e, ao mesmo tempo, é tudo. Tudo se passa como se o tempo se desse todo de uma vez e, de pronto, recuasse. Essa sensação que temos de que o tempo é o que dele dizemos ou como o vivemos em um determinado momento nos dá a arrogância de querer supor que ele é o modo como se expressa pra nós, e não uma multiplicidade, uma infinita abertura de possibilidades de experiências temporais.
Então, meu tempo nesta universidade, a UFRGS, me fez tentar transpor muros difíceis, muros que insistem e que persistem em se colocar cada vez mais altos. O muro da minha branquitude; o muro da minha arrogância; o muro do sonho vanguardista que acredita que o mundo só será salvo se as pessoas me escutarem.
Mas viver é um acontecimento. E o acontecer independe da minha identidade ou da minha lei. A vida não acontece pelo grito frívolo e infértil de diagramatizantes, instituidoras e colonizadoras vozes, que outro dia chamei de metralhadoras, essas vozes que instituem, que moralizam, que silenciam. A vida acontece pela simplicidade das existências, que insistem em aparecer reluzentes, como efeitos sonoros, musicais, corporais, como vozes-vida, perseverando na absoluta potência da natureza. O acontecimento nunca cessa de cruzar o tempo, ziguezagueando entre o presente, o passado e o futuro, feito verbo a apresentar o ato mesmo de resistir. O verbo é o ser do acontecimento. A resistência é a substância da vida. E a diferença é o tempo/natureza a se desdobrar em múltiplos modos de ser e de existir.
Por que as aulas de História deveriam apresentar apenas uma determinada experiência temporal? Apenas um modo de medir e de representar o tempo?
Aprendi, também a duras penas, a tentar acalentar o sonho de hesitar como um modo de estilhaçar o EU, um “si mesmo” imponente, prepotente, que sempre quer apagar a multiplicidade. Quisera já, a esta altura, pensar em termos de multiplicidade e não mais de uma relação hierárquica EU – OUTRO. Paciência, o trabalho é longo e demorado. Mas a hesitação me fez iniciá-lo.
São 16 anos na UFRGS trabalhando com as turmas de estágio de docência em História e com as Ciências Sócio-históricas, da Pedagogia. Demorei, mas me dei conta de que quem entra em aula não é simplesmente um professor de História, mas é um homem, heterossexual, cis e branco. Me dei conta disso menos pela teoria e mais pela presença e o constante e precioso questionamento das estudantes do Seminário no PPGEDU da UFSC, em 2017; das e dos estudantes das cadeiras de estágio, na UFRGS; e do Caio, com quem aprendi muito em um evento do Close, em 2019.
Acredito no paradoxo que me joga ao mesmo tempo nessa atualidade inescapável e na virtualidade das forças que me possibilitam criar outras relações, aprender outras relações. Esse paradoxo me tornou um professor mais aberto à aprendizagem com as estudantes e os estudantes, não como uma afirmação fácil e ao vento, mas como uma prática de um aprender que ultrapassa os limites disciplinares e dos saberes acadêmicos, que não produz hierarquias, mas que promove diálogos.
Esse era o ponto aonde queria chegar. Tem um ar de procura, de investigação, de abertura, de ampliação de forças, de amar. Tudo parece ter um gosto diferente: seja das Madeleines, seja do “puxa-puxa e torrada quente de manteiga”. Um gosto de mais vida, de mais potência, de mais perfeição. De repente tudo foi parceria. Criar só não foi mais uma alternativa, ainda que a solidão das imagens criadas dê a falsa impressão de que sou eu quem cria. Mas não, criamos eu e minhas parceiras e meus parceiros de jornada. Na pesquisa, no ensino, na extensão, na gestão, na vida.
(*) Nilton Mullet Pereira é professor da área de ensino de História da Faculdade de Educação e do mestrado profissional em ensino de História da UFRGS