As mulheres em situação de rua e o prazer com a alimentação
Segurança alimentar e nutricional no Brasil é um direito que prevê o acesso à alimentação adequada e saudável nos âmbitos de disponibilidade, produção, abastecimento, comercialização e acesso ao alimento, mas também respeito e compreensão às escolhas e práticas alimentares de grupos populacionais, o que inclui, sob uma perspectiva ampliada, a promoção de uma alimentação prazerosa e condizente com a identidade cultural de quem come. Porém, quando falamos de pessoas em extrema vulnerabilidade social, como as mulheres em situação de rua, essa perspectiva ampliada ganha foco em ações públicas? Quem se recorda da proposta de produção e distribuição da farinata na cidade de São Paulo, em 2017, pode ter um “não” na ponta da língua. Realmente o produto alimentício que ficou popularmente conhecido como “ração humana” é um exemplo claro de não preocupação com uma alimentação prazerosa e culturalmente coerente voltada à população em maior vulnerabilidade social.
As peculiaridades que o cuidado à saúde da população em situação de rua demanda refletiram na construção de políticas públicas voltadas especificamente para este grupo, como é o caso da Política Nacional para a População em Situação de Rua de 2009, que almeja, dentre outros direitos, justamente a promoção de segurança alimentar e nutricional. Os equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional, como os restaurantes populares, trazem um avanço muito importante e indispensável nesse sentido, ainda mais neste momento de pandemia em que as principais fontes de renda da população em situação de rua (como catação de lixo) estão comprometidas. O trabalho intersetorial na promoção da segurança alimentar e nutricional para a população em situação de rua é indispensável. E a este trabalho intersetorial compete a promoção de acesso ao alimento, em qualidade e quantidade adequadas, mas também a promoção de autonomia, autoestima e manutenção da cultura alimentar dessas pessoas.
Trabalhar com a dimensão do prazer em comer para a mulher em situação de rua, enquanto ferramenta metodológica e analítica, é trabalhar com uma dimensão do comer que pode nos ajudar a pensar autonomia, autoestima e coerência cultural. Além disso, é trabalhar com mulheres em situação de rua enquanto pessoas que sentem desejos e vontades, e são também agentes desse sentir, sobretudo porque a construção desse prazer está contextualizada em uma sociedade excludente e que condena prazeres de corpos Outros ao capitalismo. Digo “corpos Outros”, alinhando estas ideias à concepção de Outro do Outro que Grada Kilomba discute sobre as mulheres negras. Podemos dizer que as mulheres em situação de rua – majoritariamente pretas e pardas – são Outro do homem, Outro da branquitude e também Outro da corporeidade capitalista. As mulheres em situação de rua são corpo que rompe com os códigos de subsistência, racionalidade e consumo esperados em uma sociedade liberal de mercado – excluídas desses códigos, seus corpos são também construção da injustiça social e marca de rompimento e luta. Não trabalhar com os prazeres dessas mulheres, racializadas e negligenciadas pelo racismo e capitalismo, seria manter o acesso negado a elas à autonomia, autoestima e saúde. O corpo delas fala, o comer delas fala, o prazer delas fala. Para o avanço na construção de segurança alimentar e nutricional para mulheres em situação de rua, compreender os significados e vivências que elas carregam e constroem sobre comida, comer e prazer torna-se importante.
Sob esses paradigmas, desenvolvo minha pesquisa de doutorado pelo Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP. Realizo um trabalho etnográfico junto a mulheres em situação de rua no centro da cidade de São Paulo. Busco compreender as percepções delas sobre o prazer em comer, com uma equipe que integra antropólogo (Ramiro Fernandez Unsain) e nutricionistas (minhas orientadora e co-orientadora, Fernanda Baeza Scagliusi e Priscila de Morais Sato). Metodologicamente, realizo observações participantes e entrevistas etnográficas com mulheres em situação de rua, e também com demais autores do território, que cruzam e compõem o caminho dessas mulheres: profissionais da saúde, profissionais de serviços voltados à pessoa em situação de rua, artistas de rua, pessoas ligadas a movimentos artísticos e movimentos sociais. Apesar de ser um caminho ainda pouco trilhado, trabalhar com o prazer em comer delas enquanto objeto de pesquisa viabiliza o diálogo científico entre saberes e subjetividades e pode contribuir no avanço de políticas públicas que interajam com a agência do sentir de mulheres em situação de rua no espaço público.
(*) Fernanda Sabatini é doutoranda pelo programa de Nutrição em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP