Camadas de complexidade na questão de Taiwan
O retorno da questão de Taiwan aos holofotes da agenda securitária internacional em agosto de 2022 expôs o complexo ambiente político-econômico do Estreito de Taiwan, em que operam elementos da interdependência interestreito, da ambiguidade estratégica norte-americana e das divergentes perspectivas domésticas sobre o futuro do princípio de “Uma China” em Taipé. Localizada no centro de cruciais rotas de navegação globais, a importância geoeconômica da ilha torna a emergência de crises – como a catalisada pela visita de Nancy Pelosi (presidente da câmara dos Representantes dos EUA) – foco da atenção internacional.
Além de evidenciar a posição da ilha como um dos palcos em que se observa o status da relação China-Estados Unidos, a recente crise também expôs as diferentes interpretações taiwanesas acerca do futuro de suas relações com o continente chinês. Mecanismos de cooperação proporcionados pela identidade cultural entre as duas margens do Estreito foram responsáveis por considerável intercâmbio econômico, especialmente a partir dos anos 2000 – que acabam sendo colocados em jogo em função do escalonamento das tensões.
Uma das correntes de pensamento dominantes em Taipé, representada em grande parte pelo Partido Nacionalista Chinês (Kuomintang) – que historicamente governou Taiwan –, vê vantagens competitivas em aproveitar-se da ascensão chinesa e obter benefícios econômicos das convenientes trocas interestreito; o Partido Progressista Democrático (PPD), da atual presidente Tsai Ing-wen, por sua vez, considera a cooperação com a China fonte de dependência e vulnerabilidade excessivas, apoiando revisões à política de reconhecimento de apenas “Uma China” com dois sistemas de governo.
A visita de Nancy Pelosi – porta-voz da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, com conhecido histórico de oposição à China – a Taiwan em 2 de agosto de 2022 representa uma dimensão, entre outras, da crescente tendência à hostilidade entre Washington e Pequim. No entanto, os próprios norte-americanos expressaram diferentes opiniões a respeito da visita, especialmente em função das previstas consequências em termos de exercícios militares por parte da China, que em 2022 alcançaram níveis sem precedentes.
Na perspectiva chinesa, que considera Taiwan parte inegociável de seu território soberano, viagens governamentais de alto nível preocupam por seu valor simbólico. Sinalizam, nesse sentido, a possibilidade de que a posição dos Estados Unidos – até o momento marcada pela ambiguidade estratégica, ao não deixar claro se haverá ou não defesa militar a Taiwan em caso de guerra – seja alterada.
A interdependência entre China e Taiwan foi construída em grande medida a partir dos investimentos taiwaneses no processo de reformas chinesas na década de 1970 e segue significativa em função da alta demanda chinesa por semicondutores. A médio e longo prazo, contudo, há sinais de potencial reversão desse padrão.
Entre os fatores que podem explicar esta tendência, destacam-se: a estratégia chinesa voltada a alcançar autonomia na produção de tecnologia de ponta; a abertura de uma nova planta da maior produtora global de semicondutores, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC) nos Estados Unidos; e as mais recentes declarações do presidente dos EUA Joseph Biden sobre a possível alteração do não reconhecimento oficial norte-americano a Taiwan – indicações que já haviam sido realizadas por Donald Trump, embora com menor frequência.
A crescente assertividade da China, que ascendeu economicamente em níveis acelerados no século XXI e expressa, por meio de demonstrações de força, a resoluta mensagem de que intenções atreladas à independência de Taiwan não serão toleradas, colaboram para o escalonamento das tensões. Os exercícios militares promovidos pela China em torno de Taiwan foram seguidos pelo trânsito de navios norte-americanos e japoneses, que também buscam demonstrar comprometimento com a defesa de suas estratégias para o Indo-Pacífico.
Na liderança da fronteira tecnológica de semicondutores, Taiwan representa um hub geoeconômico, tendo a sua relevância elevada a partir do crescimento da lacuna entre a oferta e a demanda global por componentes com alta complexidade tecnológica.
Em função da política de “Uma China” – segundo a qual os países devem optar entre estabelecer relações diplomáticas com a República Popular da China (RPC) ou com a República da China (ROC), exclusivamente –, Washington não reconhece Taiwan oficialmente. O país fornece, porém, armas e treinamento militar, além de importantes trocas econômicas, garantindo condições de sobrevivência ao sistema político-econômico da ilha.
Conforme a China reduz os custos de uma potencial invasão a Taiwan e desenvolve a sua própria capacidade de produção de semicondutores, Taiwan avança projetos de financiamento em defesa com orçamentos mais robustos. À medida que as camadas de complexidade são elevadas em um contexto de aumento da fricção entre as maiores potências globais e de sobreposição de crises internacionais, Taiwan encontra menor espaço de manobra para a manutenção do status quo da ilha e do diálogo interestreito, defendido por parte do espectro político nacional.
(*) Luana Margarete Geiger é doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFRGS e pesquisadora do Núcleo Brasileiro de Estratégia & Relações Internacionais (NERINT)