Campo Grande 2023: 124 anos ou 12400 anos?
Que fique bem claro, a data de 26 de agosto tem relação com a criação do município de Campo Grande no ano de 1899. Nesta data, há 124 anos, a Resolução 225 foi assinada pelo então presidente do Mato Grosso, Antônio Pedro Alves de Barros. Esta Resolução elevou à categoria de vila e sede de município o até então distrito de Santo Antônio do Campo Grande. No entanto, somente em 1918, Campo Grande foi considerada cidade. Eram, naquele momento, as nomenclaturas usadas com relação à divisão política e administrativa do Brasil.
Sem desmerecer o papel desenvolvido por José Antônio Pereira à época, importante destacar que, por essas terras, bem antes do século XIX, povos já circulavam e por aqui já constituíam povoamentos há milhares de anos.
Por muitos anos, nos ambientes escolares, fomos forjados no sentido de darmos atenção a apenas uma narrativa, segundo a qual, em 1872, tivesse ocorrido uma espécie de "descoberta" das terras que mais tarde se tornariam o conjunto do que hoje conhecemos como município de Campo Grande.
O chamado fundador de Campo Grande, após dois anos do fim da Guerra Contra o Paraguai, procurava chegar, advindo de Minas Gerais, à região na qual hoje está localizado o município de Rio Brilhante. Os caminhos trilhados pelo famoso mineiro do século XIX eram os mesmos usados pelos combatentes na Guerra que recém havia terminado.
Assim, anos bem recentes a 1872, ano da chegada de Pereira nesta região, por aqui já haviam passado não somente soldados como também escravizados africanos e povos indígenas que iam e vinham nas suas lutas contra os colonizadores que, a todo custo, ou tentavam lhes dizimar ou realizavam o processo chamado, à época, de civilizatório desses indivíduos. Era uma árdua batalha que já durava quase 400 anos.
A região que hoje é o Mato Grosso do Sul experimentou uma ocupação bem antiga, com registros já encontrados de populações que por aqui estiveram, passaram ou moraram de 12 mil anos. Esses habitantes se constituíam de caçadores coletores, os quais apanhavam vegetais, pescavam e caçavam. Já foram encontrados vestígios desse período de peças líticas trabalhadas e também peças mais completas criadas com blocos ou seixos. Existiram por aqui também os grupos ceramistas, representantes de uma ocupação, digamos, mais próxima ao nosso tempo.
Esses indivíduos criavam peças nas cores cinza, preta polida ou marrom escura, sem decoração, de tamanho pequeno, usando técnicas de boa queima. Populações também desse passado estiveram ligadas à produção de vasilhames de paredes grossas, com tamanhos vários e pinturas, na maior parte, no interior de enormes vasos abertos, nas cores vermelha, cinza ou preta com o fundo branco. As riquezas de detalhes que vêm surgindo nas últimas décadas revelam que não tivemos bem um "descobridor" ou um fundador da história de Campo Grande. Há muito mais coisas a serem reveladas, as quais ainda se encontram ocultas debaixo do tapete histórico que colocaram sobre essa parte central do estado de Mato Grosso do Sul.
Esse olhar ao passado, quando recuada a um passado mais distante a atenção, tem como bases concretas um número bem expressivo de pesquisas arqueológicas realizadas em Campo Grande. Como resultados, na minha visão, ainda bem iniciais, pois as pesquisas continuam, temos hoje o registro de 39 sítios arqueológicos no município, todos estes lançados no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) e no Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão (SICG), ambos bancos de dados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Importante destaque aqui é o relacionado ao maior número de sítios descobertos ligados aos povos ceramistas. Esse sítios, por exemplo, têm no Córrego Rico e no Córrego das Furnas figuras rupestres, em Rochedinho vestígios líticos e no Córrego Prosa, no Parque das Nações Indígenas, na área central de Campo Grande, vestígios cerâmicos e líticos. Por aqui vemos que nossa história ultrapassa, em muito, os 124 anos.
A geografia, a história, a arqueologia e a antropologia têm nos brindado com informações preciosas de que diversos grupos humanos passaram há milhares de anos pelo território no qual hoje se localiza o município de Campo Grande. Estamos com os pés em 2023 na área central do Mato Grosso do Sul, localizada no divisor de águas da Bacia Hidrográfica do Rio Paraná com a Bacia Hidrográfica do Rio Paraguai. Era um corredor frenético no passado, pelo qual passaram muitos e muitos povos, de norte a sul, de leste a oeste.
Os povos canoeiros do Pantanal, por exemplo, já estavam com sua presença e vigor pela região do Pantanal. Quando da chegada dos europeus ao solo pantaneiro, esses povos já tinham fincado raízes há centenas de anos. E estamos aqui a falar de uma região que se encontra a apenas algumas centenas de quilômetros de Campo Grande. A grande Nação Guarani estava estabelecida por essas terras em séculos pouco antes da chegada dos Pereira. Por essa região já havia passado parte dessa célebre Nação, termo usado pelos europeus quando pisaram os pés nessas terras, e como se definem os povos Guarani hoje na América. As estimativas trazem que, em 1500, a população Guarani chegava a dois milhões de pessoas.
Essa Nação tinha como seu limite norte o Trópico de Capricórnio, a Cordilheira dos Andes como limite oeste, o Oceano Atlântico como limite leste e o estuário do Rio Prata o limite mais ao sul. Era o povo que estava presente em territórios nos quais hoje se encontram partes do Brasil, Argentina, Bolívia e Paraguai. Era uma presença que beirava os mil anos de existência quando da chegada dos colonizadores a Porto Seguro. Seguindo-se essa lógica, Campo Grande era grão de poeira no imenso território que possuía os povos Guarani.
Esse passado de Campo Grande é desconhecido pela maior parte da população local. Há poucos pesquisadores envolvidos na temática, no entanto, os mesmos têm sido bravos e persistentes na busca de maiores e mais amplos resultados em seus estudos. Os achados arqueológicos e uma análise mais acurada e crítica da história vêm demonstrando o quanto por essas terras existia já grande e maciça presença humana. Ao contrário do que muitos ainda dizem, na verdade, não havia vazios por aqui, quando da chegada dos Pereira. Da mesma forma que não houve "descoberta" do Brasil, não houve "descoberta" de Campo Grande. Houve sim chegada a um local já anteriormente habitado e também intensamente povoado.
Pensando-se nos dias atuais e notando-se que há a escrita contínua da história de Campo Grande é de grande valia a lembrança hoje da existência dos povos indígenas que vivem no contexto urbano da capital sul-mato-grossense. Nessa análise muito salutar falar da realidade de que esses povos não chegaram à cidade de Campo Grande, em uma espécie de invasão ou vinda até aqui por motivos que os trouxeram a terras que não eram suas. Pensando dessa forma e com bases bem sólidas e também provadas historicamente, a Campo Grande de 2023 com suas 24 comunidades indígenas em contexto urbano foi o território, no passado, dos povos originários que por aqui já estavam anteriormente à chegada dos colonizadores. Não foram os povos originários que chegaram à cidade, foi sim a cidade que chegou aos povos originários.
Nestes 124 anos de fundação do município de Campo Grande cabe destaque também à chegada por aqui dos ancestrais de Tia Eva, tempo de darmos real honra à memória dessa grande figura histórica que ajudou em muito na formação histórica recente da capital sul-mato-grossense. Essa temática, em outro momento, precisa ser considerada com extrema atenção, visto que essa ilustre personagem do passado de Campo Grande por aqui estava desde 1905, bem antes da data em que fomos considerados finalmente uma cidade. Em outra ocasião, interessante pensar quem foi mesmo o fundador ou a fundadora da cidade na qual moramos hoje, ou se houve, co-fundadores. É a história de passado, presente e de futuro que continua sendo escrita, com olhar crítico e sensível àquilo que realmente aconteceu por essas terras lá atrás.
Como conclusão, não há motivos para deixarmos de dar os parabéns, neste dia, para a cidade de Campo Grande e a ela desejar, incluindo-se, nesses passos ao futuro, um foco bem atencioso àquilo que as ciências têm trazido à luz relacionado ao que ocorreu por aqui há milhares de anos e também em um passado bem recente. Feliz aniversário, Campo Grande, pelos seus 124 anos ou, quem sabe, 12400 anos.
(*) Kleber Gomes é Indígena terena, professor de Educação Infantil e Anos Iniciais na Reme (Rede Municipal de Ensino) e mestrando em Ensino de História pelo PROFHISTÓRIA da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul).