Cancelamento virtual e resolução contratual
Karol Conka, Gabriela Pugliesi e Monark: o que essas personalidades têm em comum é o fato de, nos últimos anos, terem sido canceladas virtualmente e terem visto rompidos diversos contratos que mantinham com empresas.
Inegavelmente, pessoas são influenciadas por pessoas. Assim, após o surgimento da figura dos influenciadores digitais e da observação do seu poder persuasivo em relação aos seguidores, diversas empresas passaram a estabelecer contratos de patrocínio com eles, a fim de divulgar seus produtos ou serviços de forma mais eficaz. Nessa lógica, ocorre uma transferência reputacional, por meio da qual atributos de uma das partes da relação jurídica são incorporados à outra.
Um problema constatado é que, no contexto da cultura do cancelamento, reputações outrora consolidadas são destruídas muito rapidamente a partir da prática de condutas repudiadas pelo público em geral.
Dessa forma, quando um indivíduo é cancelado no meio virtual, frequentemente há uma forte pressão exercida também em relação aos seus patrocinadores, questionando-os se compactuam com as atitudes daquele que patrocinam. Em tais casos, além de a finalidade inicialmente buscada pelo contrato – a valorização da imagem do patrocinador – não ser alcançada, as empresas podem sofrer grandes prejuízos.
Tendo em vista essa problemática, questiona-se: o cancelamento virtual de um indivíduo pode gerar o cancelamento contratual de relações jurídicas a que ele esteja vinculado?
Em primeiro lugar, tem-se a hipótese de que, no próprio contrato de patrocínio, é estabelecida uma cláusula moral. Esse tipo de cláusula, originária dos Estados Unidos, tem como objetivo prever que a prática de determinadas condutas pelo patrocinado ou que a ocorrência de uma mácula em sua reputação possa justificar a resolução do contrato.
A esse respeito, é interessante o exemplo da cláusula moral utilizada pela Universal Pictures, já na década de 1920, como forma de proteção corporativa. Nos termos da sua previsão, o ator ou a atriz que estivesse vinculado à produtora concordava em não fazer ou cometer “nada tendendo a degradá-lo (a) na sociedade ou trazê-lo (a) para o público com ódio, desprezo, escárnio ou ridículo, ou tendendo a chocar, insultar ou ofender a comunidade ou ultrajar a moral pública ou a decência, ou tendendo a prejudicar a Universal Film Manufacturing Company ou a indústria cinematográfica”.
No Brasil, considera-se igualmente possível que as partes pactuem uma cláusula moral. Tendo em vista, entretanto, que, no ordenamento jurídico nacional, vigora a garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, é essencial o estabelecimento de um equilíbrio entre a autonomia privada e a proteção da personalidade, não havendo uma liberdade irrestrita de contratação.
Estabelecida essa previsão, ela funcionará como uma cláusula resolutiva expressa. Isso significa que, ocorrendo o evento nela previsto (a prática de um ilícito, a constatação de uma conduta imoral ou a crise reputacional), a empresa poderá, caso desejar, determinar a resolução do contrato.
A questão mais complicada se verifica nos casos em que, no contrato, não há nenhuma previsão expressa a respeito da resolução. De todo modo, ainda que ela seja de mais difícil constatação, permanece possível. A razão disso é que o ordenamento jurídico brasileiro reconhece, em todos os contratos, a existência de uma cláusula resolutiva tácita ou implícita, acionada mediante o inadimplemento de prestações contratuais.
Essa conclusão se justifica uma vez que, a partir do descumprimento culposo por uma das partes, dependendo de sua gravidade, possa desaparecer o interesse da contraparte em manter a relação jurídica.
É importante destacar ainda que vigoram, no direito brasileiro, os princípios de boa-fé, bons costumes e fins econômicos e sociais. Assim, por mais que, em um contrato de patrocínio, reconheça-se que a obrigação principal do patrocinador é pagar o preço acordado e que a do patrocinado é realizar a divulgação de um produto ou serviço, isso não basta.
É necessário que, na execução dessas obrigações, os patrocinados ajam com diligência e não pratiquem condutas irresponsáveis ou contrárias às expectativas legítimas daqueles que os patrocinam.
Não se tem conhecimento a respeito do inteiro teor dos contratos firmados entre Karol Conka, Gabriela Pugliesi e Monark e os seus patrocinadores, de forma que não é possível concluir se a sua resolução ocorreu a partir de uma cláusula moral ou não. De todo modo, inegavelmente, as suas condutas violaram as expectativas legítimas dos contratantes, os quais, justificadamente, quiseram se desvincular dessas personalidades.
A temática ora enfrentada é relativamente recente, acompanhando o aumento exponencial das figuras que exercem papel de influência sobre os demais indivíduos. Por essa razão, não foi possível sequer localizar julgados que abordaram a questão, a fim de compreender o entendimento das cortes brasileiras sobre o tema.
Feitas essas considerações, conclui-se que, em uma sociedade que vive de aparências, zelar pela sua reputação – seja como pessoa, seja como empresa – é cada vez mais importante. Deve, portanto, o Direito fornecer instrumentos capazes de amparar aqueles que não desejem se manter associados a personalidades cujos valores sejam diversos dos seus. Dessa forma, o cancelamento virtual de um influenciador virtual pode, sim, justificar o cancelamento de seus contratos de patrocínio.
(*) Fernanda Magni Berthier é graduanda em Ciências Jurídicas e Sociais, bolsista de extensão do Centro de Pesquisa de Propriedade Intelectual e atua na área de direito contratual e societário.