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Carnaval de rua, um direito à cidade

Por Teylor Fuchs | 23/09/2018 16:23

Na última semana temos acompanhado toda discussão em torno do carnaval campo-grandense, mais especificamente o carnaval de rua na região da Esplanada Ferroviária. Mesmo não sendo natural de Campo Grande, vivi aqui as ultimas três décadas, e acompanhei o que podemos chamar de ‘evolução’ ou ‘transformação’ no carnaval da nossa capital. Na década de 90, temos o carnaval caracterizado pelos bailes nos clubes, mais restrito às classes médias, e o mais popular, o carnaval da Fernando Correa da Costa, entretanto vimos esse cenário mudar no inicio dos anos 2000.

Com toda certeza podemos afirmar que o surgimento do Cordão Valu em 2006 é um dos grandes responsáveis por essa transformação ocorrida. Comandado pela incansável Silvana Valu, seus fundadores tinham o intuito de resgatar o carnaval de rua, com suas bandas e marchinhas, amantes do samba e da cultura popular buscavam voltar as raízes e democratizar essa linda festa. Um marco no nosso carnaval de rua, em pouco mais de dez anos do seu surgimento, inúmeros outros blocos e cordões foram criados, entre eles podemos destacar o Capivara Blasé que também é organizado na região da Esplanada Ferroviária. Segundo dados divulgados deste ano, nas principais noites cerca de 40 mil pessoas participaram da festa momesca na região da Esplanada Ferroviária, isso representa aproximadamente 5% da população da nossa capital, o que demonstra, que muito mais que uma simples festa, o nosso carnaval de rua já é um patrimônio cultural da nossa sociedade.

Entretanto, na sexta-feira (14), fomos surpreendidos por uma decisão do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, provocado por uma ação movida por alguns moradores, o MPMS decide, sem ouvir os blocos e cordões, recomendar “para que não haja permissão na realização dos eventos, tais como carnaval, enterro dos ossos e afins, na Esplanada Ferroviária e entorno, no ano de 2019 e posteriores”. Amplamente divulgada pela imprensa a decisão deixou perplexos os milhares de foliões e provocou revolta e indignação nos organizadores de blocos e cordões. Na mesma decisão é indicado que os organizadores procurem outro local para a realização dos blocos, chegou a ser divulgado em sites de noticias uma suposta sugestão do Autódromo Municipal para realização do evento. Pelas características do local e principalmente pela dificuldade do seu acesso, sugestão esta que só pode representar um misto de sarcasmo e ignorância sobre tão importante expressão cultural da nossa sociedade, tal estultice nem chegou a ser cogitada pelos organizadores.

O que mais preocupa, e revolta, é que tal decisão não é isolada estamos vivendo em nossa capital uma onda proibitiva, ora pelo poder público municipal, ora pelo judiciário, analisando as ultimas medidas e decisões que temos acompanhado, no que tange a arte e a cultura, podemos dizer que nossa suntuosa morena já pode ser chamada de “Campo Grande: a cidade proibida.” Recentemente relatei aqui o ocorrido com os poetas do Slam Campão que estavam sendo impedidos de recitar ,poesia em praça pública porque não detinha “alvará”, mais adiante acompanhei pelas redes sociais as dificuldades enfrentadas pelos mesmos para recitar poesias nos terminais de ônibus, mais uma vez a burocracia. Os sites e jornais têm mostrado nos últimos meses a onda de fechamento de bares, casas noturnas e espaços culturais, impelidos pelas dificuldades financeiras, mas também, e principalmente pelas dificuldades em atender as exigências burocráticas das normas e leis, entre elas famigerada Lei dos 45 decibéis. Promover arte e cultura em Campo Grande tem sido ato heróico, a ocupação dos espaços públicos é a resistência da cultura.

A ocupação dos espaços públicos nos remonta a questão do direito à cidade, conceito que surgiu na efervescente Paris de 1968 criado pelo sociólogo Henri Lefebvre, entendia a cidade como projeção da sociedade no terreno, portanto marcada por profunda exclusão e desigualdade, de forma bem resumida o direito à cidade consiste na democratização e garantia de acesso à cidade e seus equipamentos urbanos. O conceito foi amplamente divulgado no meio acadêmico e, segundo estudiosos incorporado a legislação brasileira, mesmo que em outros termos, na Constituição de 1988, no capitulo denominado “Política Urbana” através dos artigos 182 e 183.

Com o objetivo de regulamentar estes artigos foi publicada em 2001 a Lei 10.257 conhecida como Estatuto das Cidades tem entre outros objetivos “proporcionar a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos” outro fator de destaque da lei e a questão da participação social, cria mecanismos e obriga a participação social em todas a esferas de elaboração das políticas públicas urbanas. Nesse sentido um evento com mais de uma década de história, que na ultima edição reunião 5% da população total da cidade é um direito do cidadão ao lazer e a cultura, os pequenos problemas gerados na realização deste evento, são de responsabilidade do executivo, devem ser pensados e planejados estrategicamente com a participação de todos os setores envolvidos buscando soluções e não serem utilizados como justificativa para proibir o evento e cercear o cidadão ao seu direito.

No que diz respeito a questão do Patrimônio Histórico, em resposta ao MPMS, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional se posicionou nesta semana, em nota, o IPHAN MS, ao contrario das varias interpretações feitas, corrobora com os argumentos dos blocos e cordões sobre a viabilidade da manutenção do evento naquele local, como demonstrado neste trecho “ O IPHAN reconhece que a celebração do carnaval como rica expressão cultural brasileira, enquanto realizada na área tombada pode promover o reconhecimento e apropriação da área pela população”, mais adiante na nota o instituto ainda reforça que o Patrimônio Histórico jamais deve ser colocado como obstáculo para o acesso e a realização de eventos, entretanto ciente das limitações jurídicas e administrativas do órgão, e, frente a ausência de ações do executivo municipal e estadual o órgão se vê obrigado a aceitar as determinações.

Toda ação provoca uma reação e diante da iminência da proibição, do já tradicional carnaval de rua na região da Esplanada Ferroviária, os blocos e cordões “saíram as ruas” e disso eles entendem muito bem, segundo informações da pagina de um dos organizadores, na sexta-feira (21), foi mobilizada uma reunião com representantes da Prefeitura, Governo do Estado, moradores da esplanada, representantes da Feira Central, Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, coordenadores e representantes de blocos e demais interessados, com o objetivo de criar um dialogo amplo e coletivo, refletir sobre os problemas, mas acima de tudo criar soluções para garantia da manutenção e realização do carnaval de rua na região da Esplanada Ferroviária.

Como foliões, mas acima de tudo como cidadãos, esperamos que o poder público, executivo e judiciário, entendam que a solução para grandes eventos, importantes expressões da nossa cultura e identidade, bem como a ocupação dos espaços públicos através da arte e cultura, não são resolvidos com censura e proibições, e sim, com a responsabilização dos agentes públicos responsáveis, com planejamento estratégico, com a ampliação de investimentos, com a ampliação do dialogo e a construção democrática, e, com o acesso e a descentralização dos equipamentos públicos, garantindo a todas e a todos o efetivo direito à cidade. Que as canetadas conservadoras e moralistas não apaguem o brilho da nossa cultura, com nossos confetes, serpentinas e purpurina. Pelo patrimônio, pela cultura, pelo direito à cidade, carnaval na Esplanada Sim!

*Teylor Fuchs é Sociólogo; professor; Especialista em Educação em Direitos Humanos

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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