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Cidades intermediadoras na Amazônia: em busca de uma visão integrada

Maria Beatriz Gandolfi Dallari e colaboradores (*) | 28/09/2021 08:30

Conceber cidades intermediadoras de novos fluxos na Amazônia pressupõe indicar passagens, patamares e potencialidades inscritas no presente que alarguem as margens de outros futuros possíveis para a região e para o País. Significa também indicar outro caminho que não a malfadada macrocefalia urbana, com suas deseconomias de escala, incapacidade de expansão proporcional de serviços básicos, crescente déficit habitacional e segregação urbana vinculada ao avanço do domínio de milícias e facções criminosas, como já as encontradas nas regiões metropolitanas de Belém e de Manaus.

Na Amazônia, não há como dissociar ciclos espasmódicos, ajustes espaciais desestruturantes e a presença de cidades concebidas como aparatos de drenagem das riquezas regionais. O policentrismo urbano na Amazônia, em sentido oposto, deve ser constituído em uma nova “fronteira urbana” – agregando ao conceito de Bertha Becker um sentido de contraponto à fronteira econômica -, fronteira de regulação social e territorial que contrabalance e regule as dinâmicas centrífugas provindas do avanço incondicionado da fronteira de commodities.

Prioritário, portanto, é que sejam viabilizados diálogos e geradas capacidades que impliquem um novo pacto territorial-cultural a partir de cidades intermediadoras. Essa pactuação deve partir do pressuposto de que a biodiversidade amazônica só existe por conta da sociobiodiversidade que lhe antecede e sucede. Para fazer da sociobioeconomia o elemento diferencial de indução do desenvolvimento regional, faz-se necessário identificar atores e cenários propensos nas cidades intermediadoras e em seus entornos alargados.

Tal esforço se fará em grande parte na contramão das dinâmicas socioterritoriais hegemônicas na região, emanadas pela expansão da fronteira hidrelétrica e mineral e pelo avanço da cadeia da soja e pecuária e de seus respectivos corredores logísticos. À preempção e funcionalização de cidades e territórios por grupos empresariais deve ser contraposta uma agenda de diversificação de investimentos que aponte para as transições propugnadas nacional e internacionalmente para a Amazônia.

Sugere-se como primeiro passo demarcar regimes de convivência entre essas verticalidades (fluxos externos-globais) e as horizontalidades (fluxos intrarregionais), considerando a organicidade dos entornos potencializada por sociobioeconomias. O passo seguinte dependerá da capacidade de agentes públicos e privados para coordenar o cruzamento e a articulação destas dinâmicas. Tanto no primeiro momento como no segundo, a estruturação física e institucional das cidades intermediadoras da região cumprirá um papel crucial no entrelaçamento de políticas de desenvolvimento regional, de desenvolvimento urbano e de ordenamento do território.

O processo de formação socioeconômico da região amazônica brasileira centrou-se numa visão que invisibilizou e desprezou milenares processos de ocupação tradicional. A invenção de um conveniente “vazio demográfico” somada à concepção da Amazônia como um grande estoque de recursos territoriais abriu caminho para desastrosas intervenções governamentais e empresariais há muitas décadas. O enquadramento desses territórios funcionalizados e reinterpretados de fora para dentro resultou em níveis crescentes de desestruturação social, com urbanização difusa, precária e desigual, na ausência de políticas públicas continuadas.

Não é por outro motivo que figuram no topo da lista dos maiores emissores de gases-estufa do Brasil os municípios de São Félix do Xingu, Altamira, Porto Velho, Pacajá, Colniza, Lábrea, Novo Repartimento, Portel, Nova Mamoré, entre muitos outros municípios da Amazônia Legal já listados ou em vias de ser. Nestes recordes de emissão, mesclam-se queimadas, desmatamentos, avanço da pecuária e da soja, instalação incondicionada de grandes projetos, resultantes de investimentos de grandes grupos financeiros transnacionais e do centro-sul do País. Destaca-se que esses municípios tornados campeões em índices de degradação sejam ao mesmo tempo os detentores dos piores índices de escolarização, saúde pública, habitação digna e saneamento básico.

Não é por casualidade geográfica que Manaus, capital do Estado do Amazonas, com uma taxa de 422 óbitos por 100 mil habitantes, tenha sido uma das cidades mais afetadas do País pela pandemia. Não sofreram menos, em proporção, as demais capitais amazônicas, além das cidades intermediárias. A variante Gama (P1) do sars-cov-2, surgida em uma Amazônia em decomposição acelerada, variante batizada como “brasileira”, é resultante de dinâmicas de mobilização e arregimentação de trabalhadores informais em frentes incessantes de devastação de áreas protegidas e de florestas públicas. Onde a roda viva extratora de commodities, gestão Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente, mais se acelerou durante a pandemia, onde o desmatamento, as queimadas, os garimpos ilegais foram, na prática, considerados “atividades essenciais”, não se poderia esperar outro nível de contágio. E frente ao desprovimento de estruturas de atendimento hospitalares elementares na região, como não chegar primeiro ao colapso hospitalar e funerário?

Na mensuração e monitoramento da mortalidade por covid-19 nos municípios brasileiros, feitos pelo portal Brasil.io, nota-se que a taxa de letalidade é diferenciada nas cidades intermediárias da Amazônia Legal, especialmente naquelas dedicadas à produção e escoamento de commodities. Aparente paradoxo: cidades provedoras de matérias-primas para as cadeias globais de valor, desprovidas de redes de atendimento hospitalar suficientemente equipadas com UTIs e equipes médicas especializadas.

Ressalte-se que as vítimas primeiras dessa mortandade intensificada foram as comunidades tradicionais, sem acesso a serviços básicos e a procedimentos singularizados, compatíveis com seus territórios e cosmovisões. Comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas acossadas e desestruturadas pelo avanço desimpedido das fronteiras de commodities enfrentaram a pandemia com pouco ou nenhum suporte institucional. Na Amazônia Legal, apesar da existência de agências regionais consolidadas (Sudam, Suframa e Basa) e espaços de gestão intrarregional como o Consórcio de Governadores da Amazônia Legal e mais recentemente o Conselho Nacional da Amazônia Legal, não foi proposta nenhuma iniciativa conjunta para o enfrentamento da pandemia que levasse em conta as especificidades da região e de seus povos.

Eis por que cabe à Amazônia – e às suas cidades intermediadoras – uma missão territorial que inverta estes processos e prioridades. Implementando políticas mission oriented para a Amazônia Legal, o País demonstra capacidade de definir direção e ritmo de sua trajetória de desenvolvimento. Esta missão consiste em oferecer caminhos concretos para a transição socioecológica com protagonismo dos atores sociais locais e regionais, com ênfase na economia do conhecimento, em que se destacariam fitofármacos, compostos imunobiológicos, produções culturais híbridas e reoriginalizadas, produções agroecológicas com certificação de origem, ecoturismo de base comunitária e educação ambiental.

As dimensões sociais e ambientais, nas percepções tanto de agentes privados quanto de agentes públicos, particularmente os organismos internacionais, se tornaram ainda mais indissociáveis na avaliação das consequências da pandemia da covid-19 e também na proposição de medidas adicionais de precaução. Isso se reflete na maior centralidade adquirida de proposições como o Green New Deal, da Economia Verde nas agendas políticas dos países do G-20, em particular dos EUA e da União Europeia, com destaque para as iniciativas dos governos da França e Alemanha.

É neste sentido que as definições de sociobioeconomia, para além da descrição de setores ou atividades específicas, devem considerar rearranjos profundos de modos de produção e consumo, com absorção intensiva de mão de obra e incorporação de culturas tradicionais e tecnologias sociais das comunidades tradicionais. Essa seria a especificidade dos green jobs ou das coalizões blue-green na Amazônia.

(*) Maria Beatriz Gandolfi Dallari é mestranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

(*) Maria da Penha Vasconcellos é professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.

(*) Luis Fernando Novoa Garzon é pesquisador do grupo Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

 

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