Coronavírus: banalização da vida-morte ou desinformação
Segundo o site El País (OLIVEIRA; BORGES; BEDINELLI, 2020), já se contabilizam, até o dia 25 de agosto, mais de 116 mil mortos e quase 3,6 milhões de infectados no Brasil. Ainda assim, tomando como base o frequente descumprimento em relação à quarentena (TOLEDO, 2020), percebe-se que parte da população é resistente à ideia de que é impossível voltar a vida normal. Nesse sentido, abre-se a discussão se esse desejo inocente é banalização da vida-morte (mesmo que não apresente como tal) ou falta de informação.
Inicialmente, ao olhar para o passado, é nítido que, em muitas ocasiões (como na Segunda Guerra Mundial ou nos movimentos eugenistas ocorridos também no Brasil), a população de um modo geral foi levada a concordar com práticas absurdas.
Por exemplo, na Alemanha nazista, parcela considerável da sociedade alemã foi a favor dos campos de concentração, das torturas, das mortes e de outras barbaridades, embora o que mais se saliente é a figura maligna do Hitler (ANDRADE, 2010). Outra ilustração, no Brasil do final do século XIX e começo do século XX, a classe dirigente (e aqui inclui a classe média que também dava suporte argumentativo teórico) reproduzia discursos racistas que defendiam embranquecimento da população, pois, na visão deles e de parte do mundo da época, o atraso econômico se devia à cor de seus cidadãos (CÁ, 2018). É importante dizer que, para seus respectivos períodos históricos, tais posturas eram consideradas lógicas, mas, na atualidade, não o são. Por isso, é fundamental muita cautela antes de julgamentos de natureza moral.
Nos dias de hoje, a história se repete. Observa-se que parte da sociedade é contra o distanciamento e isolamento social, mesmo com estudos comprovando que tais medidas são imprescindíveis para atenuarem a infecção da Covid-19; estas estão se reunindo e se aglomerando dia sim, dia também. Estão indo a shoppings, aos bares, às casas noturnas, entre outros locais. Agora, foi trazida a questão do retorno das aulas presenciais. Noutro dia, em discussões acadêmicas informais, argumentaram-se que certos profissionais precisam não só estar na linha de frente, mas também melhor preparados para enfrentar crises como essa; por esse motivo, as aulas deveriam retornar.
Muito válidas as colocações para os últimos anos dos cursos de saúde e mesmo os que estão em tempos de conclusão e formatura (com ressalvas), se não fosse o fato de que muitos estudantes vêm de vários recantos do país e que, ao chegarem em suas respectivas universidades, irão voltar a sua vida cotidiana universitária, podendo ou não estarem doentes (estejam eles assintomáticos ou não). No entanto, o contra argumento foi que cabe a cada um saber o que fazer, já que são maiores de idade. Será mesmo verdade? Se não fossem as campanhas de conscientização de alguns órgãos do governo (é dito alguns, pois sabemos que o Executivo não está muito preocupado em frear a escalada de doentes, tampouco de mortos) em conscientizar a população acerca da necessidade de ficar em casa para conter o contágio, provavelmente iria ser muito pior a negligência quanto ao uso de máscaras, distanciamento e essas aglomerações sociais.
Poderiam dizer que a taxa de recuperados é alta e que o que é preciso são leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Uma das colocações foi a de que, em muitos estados e cidades, as UTI’s não estão lotadas (OBANDO, 2020), o que é questionável, pois isso não é condição necessária e suficiente para se afirmar que está tudo bem; afinal, se não estão em sua capacidade total de recepção, não significa que, futuramente, não se preencherá. Um dos motivos do lockdown é diminuir a taxa de acidentes, como os automobilísticos, para não sobrecarregar tais unidades hospitalares (IDOETA,2020).
Além disso, embora a taxa de mortos não seja alta, quando comparada com outras doenças (como o Ebola, Gripe suína e Gripe aviária), há sequelas que afetam a qualidade de vida e que trazem prejuízos orgânicos. De acordo com matéria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (COMOLI, 2020), alertou-se para as chances de repercussões cardiovasculares, neurológicas e digestivas que se perpetuam mesmo após a “cura”. Além disso, estudos também mostram que, embora curadas, pessoas que tiveram a COVID-19 se reinfectaram (TALAMONE; DORADO, 2020), denotando possíveis mutações do vírus Sars-Cov-2 (BBC, 2020).
Tal cenário tem sido, com frequência, salientado pelas autoridades e a grande mídia. A população, porém, parece não compreender tal magnitude nacional e internacional da doença. Empaticamente, é compreensível a preocupação com suas vidas particulares (é tão particular que estudantes dizem que, pelo fato de seus parentes trabalharem em hospitais em que não há casos de COVID-19 entre funcionários, já era possível afirmar que se poderia voltar à vida tal qual ela era e que está tudo bem).
Não, não está tudo bem. São mais de 116 mil mortos, além dos sequelados; são vidas em risco, famílias que perderam entes queridos, diretamente, o retorno das aulas não afeta estas famílias, tampouco aquelas que futuramente vão perder parentes e amigos. Entretanto, indiretamente, quando se retornarem as aulas presenciais, uma série de profissionais retornará presencialmente às suas ocupações, fazendo com que, no conjunto, muitas pessoas se desloquem de suas casas, colocando em risco outras pessoas e, aqui, nem se analisou os outros locais que também serão frequentados pelos estudantes (como restaurantes, shoppings, laboratórios, e outros tipos).
Portanto, no futuro, ao voltarmos para trás, seremos capazes de analisar com mais clareza o que se passou. Por enquanto, notam-se pessoas que não estão tão preocupadas com as outras quanto aos seus interesses pessoais. Para eles, o mais importante é retornar a “vida” como ela era, ignorando os fatos noticiados e as vidas perdidas. Tal qual o nazista Eichmann que foi incapaz de analisar e questionar seus atos, quando levava milhares de pessoas judias para morte (ANDRADE, 2010); os cidadãos, hoje, estão agindo de forma semelhante, na medida em que suas ações implicam, direta ou indiretamente, a vida-morte de pessoas.
Ao responder à pergunta do título do artigo se isso é banalização da vida-morte ou desinformação, poderia se dito que é um pouco dos dois, mas isso é resultado da piora ou do desenvolvimento de alguns problemas emocionais, que grande parte da população está tendo como recidivados ou mesmo desencadeados na atualidade. Porém, a maioria não os admite; por conta disso, há um aumento progressivo destes transtornos, comprometendo mais ainda os relacionamentos sociais. Podem-se ser trazidos mais argumentos, além desses levantados, para explicarem tais posicionamentos; todavia, o grande número de mortos nacional 116 mil (OLIVEIRA; BORGES; BEDINELLI, 2020), e aqui de novo se enfatiza propositalmente, e mundial cerca de 820 mil (Johns Hopkins University and Medicine, 2020) já é autoexplicativo por si.
E, se não é o bastante, sugere-se que volte a leitura do artigo e repense mais sobre sua vida e de outrem.
(*) Bruno Massayuki Makimoto Monteiro (brunoftmakimoto@hotmail.com) é acadêmico de Medicina da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
(*) José Carlos Souza (josecarlossouza@uol.com.br) é PhD em Saúde Mental, psiquiatra, docente do curso de Medicina da UEMS
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