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Corredor Bioceânico: caminho de Mato Grosso do Sul ao Pacífico

Pedro Silva Barros (*) | 08/10/2020 09:03

“E o sul de Mato Grosso muito bem se pode definir como a futura plataforma onde receberemos tudo que tivermos de carrear para Santos. Nesse particular, o sector compreendido entre Corumbá, Campo Grande e Ponta Porã há de ter, num futuro não remoto, a significação político-econômica de uma Santos mediterrânea.”

Essas palavras são de Mário Travassos, pioneiro da geopolítica no Brasil, em seu texto clássico de 1931.

Passado quase um século, parece que o antagonismo entre Atlântico e Pacífico começa a ser superado por corredores rodoviários em regiões pouco desenvolvidas.

O corredor rodoviário bioceânico é um projeto de integração física que conectará Porto Murtinho (Mato Grosso do Sul) com os portos do norte do Chile, próximos ao trópico de Capricórnio.

A primeira estrada que cruza o chaco paraguaio no sentido leste-oeste está sendo pavimentada, obra que deve terminar em 2022. Os trechos da Argentina e Chile estão prontos e precisam de rápidas melhorias.

Os recursos para a ponte entre o Porto Murtinho no Brasil e Carmelo Peralta no Paraguai já estão aprovados por Itaipu Binacional. Se prevê que a obra completa estará pronta em 2023.

Nas últimas quatro décadas o investimento em infraestrutura na América Latina tem sido muito menor do que a média mundial e bastante abaixo das necessidades da região.

Faz 20 anos, durante a Primeira Reunião de Presidentes da América do Sul, liderada pelo Brasil, foi criada a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), com o objetivo de organizar a integração de infraestrutura na região.

Há dez anos, a IIRSA foi incorporada ao Conselho Sul-americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan) da União de Nações Sul-americanas (Unasul), de modo que as discussões sobre infraestrutura passassem a envolver diretamente a participação dos governos e tratar que os projetos seguissem uma orientação político-estratégica.

Ainda que com o mérito de reunir uma carteira com mais de 500 projetos de infraestrutura anualmente atualizados, os investimentos não aumentaram na velocidade planejada.

A IIRSA deixou de ser atualizada em dezembro de 2017, momento em que os ministros de planejamento da América do Sul se reuniram pela última vez, às vésperas do colapso da Unasul e da governança regional em infraestrutura.

Todos os projetos que envolvem mais do que dois países foram paralisados, exceto o corredor rodoviário bioceânico, rota Porto Murtinho-Portos do Norte do Chile.

O projeto desse corredor foi formalizado em 2015 para viabilizar o desenvolvimento de regiões que não foram adequadamente incluídas nos processos de integração nacional e regional, como são os casos do Centro-Oeste brasileiro, do chaco paraguaio, do noroeste argentino e do norte chileno.

O Grupo de Trabalho (GT) criado pelos presidentes de Argentina, Brasil, Chile e Paraguai resistiu a mudanças de governo e orientação política nos quatro países. A explicação dessa excepcionalidade passa por mudanças geoeconômicas globais, pelo dinamismo econômico de Mato Grosso do Sul e das regiões vizinhas e pelo compromisso de seus governos subnacionais.

O enorme dinamismo econômico asiático recente tem exercido um poder de atração impressionante. Há 20 anos, menos de 2% das exportações do Brasil iam para a China. Em 2019, chegou-se ao recorde de 28%.

Nos oito primeiros meses de 2020, o gigante asiático responde sozinho por 34% do total das vendas brasileiras. Neste ano, pela primeira vez na história, mais da metade das exportações de Mato Grosso do Sul tem sido para a China, e mais de 2/3 para a região Ásia Pacífico como um todo.

Esse movimento é um dos fatores da ascensão do Centro-Oeste brasileiro, agroexportador, nas últimas quatro décadas. Período que coincide com o declínio relativo das regiões industrializadas do Sul e Sudeste. Essas características têm sido intensificadas no último período.

Se as exportações totais do Brasil caíram 7% nos oito primeiros meses de 2020 comparados a 2019, as exportações de Mato Grosso do Sul aumentaram 13% no mesmo período.

Se as importações de todos os estados do Brasil estão caindo muito em 2020, as compras de fertilizantes estão subindo, particularmente em Mato Grosso do Sul.

O estado aumentou em 60% as importações de fertilizantes de potássio neste ano. O principal fornecedor desse produto é o Canadá. O trajeto se inicia em Vancouver, cruza o Canal do Panamá para desembarcar em Santos e percorrer mais de mil quilómetros para chegar às fazendas do centro de Mato Grosso do Sul.

É bastante mais econômico e rápido chegar aos portos do norte do Chile e percorrer 1.400 quilômetros para estar em Porto Murtinho (MS).

A representação política de Mato Grosso do Sul, como das regiões do corredor nos países vizinhos, tem sabido atuar de forma pragmática, superando a fragmentação política que caracteriza a conjuntura sul-americana.

Mato Grosso do Sul ocupa posições importantes para a viabilização política do corredor.

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tem sobressaído pela aproximação ao nosso principal parceiro comercial. O presidente da comissão de relações exteriores do Senado, Nelson Trad Filho, tem evitado, em seu âmbito de atuação, a ideologização exacerbada da política externa brasileira. Carlos Marun, conselheiro de Itaipu, tem atuado desde quando era deputado para garantir financiamento para a construção da ponte entre Porto Murtinho e Carmelo Peralta, uma das principais obras do corredor.

Em comum, os três têm vida política em Mato Grosso do Sul.

Apesar do desmantelamento de organizações regionais, o corredor rodoviário bioceânico continuou promovendo reuniões até o presente, e os trabalhos do GT têm avançado significativamente.

Estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pela Empresa de Planejamento e Logística (EPL) mostram que os ganhos logísticos para as exportações via corredor podem alcançar US$ 500 milhões anuais para os produtos de Mato Grosso do Sul nas exportações para a região da Ásia Pacífico, concentrados na celulose, mantidas as quantidades atuais.

O desafio é que o corredor bioceânico seja um catalisador de uma rede de desenvolvimento que amplie seus benefícios para além dos setores exportadores já consolidados, como soja, celulose e carnes tradicionais.

Ao mesmo tempo que o corredor dá mais competitividade para as exportações, abre oportunidades para o fomento do comércio intrarregional (que está em queda nos últimos anos), desenvolvendo cadeias regionais de valor.

O corredor permitirá a articulação da pequena e média produção do Centro-Oeste brasileiro, Paraguai e noroeste da Argentina com cadeias produtivas chilenas que já têm logística estruturada em mercados asiáticos.

Por exemplo, carnes exóticas produzidas no Pantanal, que não tem escala suficiente para alcançar mercados asiáticos, se apoiarão nas redes dos exportadores de peixes chilenos. A produção de lácteos do chaco paraguaio será expandida para os mercados do oeste brasileiro e norte chileno.

O corredor rodoviário será muito mais bem aproveitado se articulado com ferrovias e hidrovias.

O primeiro comandante da Academia Militar de Agulhas Negras via Mato Grosso como a grande esquina do Brasil em pleno coração da massa continental. É o espaço onde se cruzam os caminhos entre o Atlântico e o Pacífico e as bacias platina e amazônica.

O dinamismo agrícola, a demanda asiática e as obras de infraestrutura em curso poderão marcar, finalmente, o início do que o Capitão Travassos dos anos 1930 vislumbrou como a Era Mato-Grossense.

(*) Pedro Silva Barros é economista e doutor em Integração da América Latina pela USP, foi diretor de Assuntos Econômicos da União das Nações Sul-Americanas (Unasul).

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