Covid-19 e a resistência antimicrobiana
A resistência antimicrobiana (RAM) é uma ameaça global à saúde pública, tal como se tornou a pandemia pelo vírus SARS-CoV-2. Em estudo publicado em 2014, Jim O’Neill apresentou um prognóstico de cerca de 10 milhões de mortes por ano até 2050 em virtude do avanço da RAM. No entanto, diante da necessidade de empregar recursos e esforços para o enfrentamento da pandemia de covid-19, o combate à RAM passou para o lugar de coadjuvante em um primeiro momento, tornando real a perspectiva de agravamento das taxas de resistência.
É fato reconhecido que o rápido aumento das taxas de RAM é superior à disponibilidade de novas alternativas de tratamento. Nesse contexto, a atual pandemia desencadeou uma preocupação adicional, uma vez que se observou elevado emprego de antibióticos de amplo espectro para tratamento empírico de pacientes hospitalizados, baseado em evidências clínicas pouco consistentes. São diversos os fatores que podem justificar a alteração do padrão de consumo de antimicrobianos em ambiente hospitalar, não sendo adequado atribuir apenas à disseminação de conhecimento pouco consistente acerca do tratamento durante a pandemia. A sobrecarga dos sistemas de saúde, associada à ansiedade dos profissionais frente à gravidade dos pacientes, à experiência prévia com epidemias virais e à dificuldade de diagnosticar coinfecções bacterianas são complicadores na utilização racional de antimicrobianos em ambiente hospitalar.
A azitromicina, antibiótico do grupo dos macrolídeos, é um dos antimicrobianos característicos dessa alteração no padrão de consumo essencialmente em áreas hospitalares destinadas ao tratamento de covid-19. Ainda que o antibiótico seja apontado como uma terapia promissora, a literatura disponível apenas sugere uma hipótese de efeito benéfico, e não há um consenso a respeito do emprego no tratamento da covid-19.
A ocorrência de infecções bacterianas secundárias está amplamente associada à gravidade clínica dos pacientes com diagnóstico de covid-19 por necessitarem de extensos cuidados à saúde. Além da extensa permanência hospitalar em UTI e a necessidade de ventilação mecânica, as infecções hospitalares estão diretamente ligadas ao uso de outros dispositivos como cateteres, bem como pela debilidade da resposta imune presente pela própria fisiopatologia da doença. Pacientes que necessitam de pronação apresentaram maiores taxas de infecções secundárias relacionadas ao cuidado à saúde devido à necessidade de contato prolongado com os profissionais, tornando propícia a transmissão cruzada de microrganismos. A ocorrência de infecções secundárias também está vinculada ao aumento das taxas de mortalidade hospitalar.
Cabe mencionar que o avanço da prática da telemedicina – associada à falta de conhecimento especializado dos profissionais médicos com relação à prescrição de antibióticos – também pode representar um possível fator contribuinte para o aumento do consumo de antimicrobianos no âmbito comunitário. No entanto, dados que representem fidedignamente a prescrição de antibióticos em paralelo à intensificação da telemedicina durante pandemia são limitados. Dessa forma, não há como delinear assertivamente o efetivo impacto da telemedicina no desenvolvimento da RAM.
A presença de microrganismos resistentes a múltiplas drogas (MDR) nessas infecções é a mais alarmante preocupação devido à dificuldade de tratamento efetivo em razão da pouca ou nenhuma opção terapêutica. Embora a epidemiologia de infecções hospitalares seja característica de cada instituição e localidade, é possível observar grande prevalência de isolados gram-negativos em infecções secundárias ao SARS-CoV-2. O conhecimento da proporção de pacientes com covid-19 que adquirem infecções associadas à saúde e os patógenos causadores são ferramentas importantes para garantir o uso racional de antimicrobianos.
Diante dos desafios que o início da pandemia de covid-19 apresentou com relação à sobrecarga dos sistemas de saúde, serviços essenciais tiveram suas rotinas afetadas, tais como os programas de gerenciamento de antimicrobianos e serviço de prevenção e controle de infecções, fato que provavelmente contribuirá para o aumento do desenvolvimento de MDR e RAM em longo prazo.
É compreensível que as primeiras tomadas de decisão dentro do âmbito hospitalar tiveram caráter emergencial, nem sempre sendo possível compilar todos os possíveis impactos antes que a medida fosse adotada. Com o decorrer da pandemia, entretanto, essa perspectiva acerca da importância de manter, e até mesmo de ampliar, os esforços de combate à RAM se tornou evidente e muitos estudos passaram a avaliar retrospectivamente os prováveis impactos negativos.
Ainda que haja uma extensa preocupação no que concerne aos impactos deletérios para o combate da RAM, a pandemia de covid-19 pôde proporcionar avanços positivos, mesmo que em menor proporção. A pandemia tornou evidente a necessidade de implementação e fortalecimento dos programas de stewardship, retificou a benéfica interação multidisciplinar entre profissionais da comissão de controle de infecção hospitalar (CCIH), microbiologia e responsáveis pelo programa de manejo dos antimicrobianos. Além disso, as próprias medidas de distanciamento social, a restrição da escala de viagens internacionais e a maior conscientização acerca da importância das práticas de higiene de mãos podem ser parte de um legado positivo.
Com o duplo desafio de tratar as infecções de forma eficaz e continuar a combater o desenvolvimento da RAM, reveste-se de particular importância entender o impacto da pandemia no consumo de antimicrobianos, uma vez que conhecer esses padrões ajudará no desenvolvimento de estratégias que garantam o tratamento adequado de infecções e o acesso equitativo a antimicrobianos sem comprometer as medidas de contenção da RAM.
(*) Franciele dos Santos Batista é aluna da graduação do curso de Farmácia e foi orientada, no trabalho de conclusão de curso, por Afonso Luís Barth.