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Cristianismo e ciência: da integração entre razão e fé ao obscurantismo

Roberto Carlos Gomes de Castro(*) | 10/10/2021 07:57
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade

A Igreja que desconsidera a ciência pratica péssima teologia, está afastada da mais autêntica tradição cristã e ofende diretamente o Criador.

No que se refere à teologia, as mais antigas manifestações do pensamento teológico cristão já se colocam a favor de uma integração entre a fé e a razão. No século 2, Justino Mártir (100-165), por exemplo, afirmou que “tudo o que de verdade se disse pertence a nós, os cristãos” (Segunda Apologia, XIII). Com isso, ele quis dizer que os resultados da reflexão racional – venham de onde vierem – contribuem para aproximar o cristão do objetivo tão almejado de conhecer os mistérios da criação divina.

A profunda visão de Santo Agostinho (354-430) – o maior teólogo da Antiguidade cristã – sobre a colaboração entre fé e razão está resumida na famosa frase do Sermão 43: “Entende para que creias, crê para que entendas”.

É certo que o cristianismo produziu também um pensador como Tertuliano (160-220), que via na razão um inimigo, combatia a filosofia grega e condenava as artes e os espetáculos. Mas essa concepção sempre foi minoritária ao longo da trajetória da Igreja – com exceção de alguns momentos na história –, e Tertuliano chegou a ser chamado de haereticus pelo maior teólogo medieval, Tomás de Aquino (1225-1274), justamente porque atribuía aos demônios e ao paganismo aquilo que, fundamentalmente, tem origem divina.

Tomás de Aquino foi o teólogo que mais longe levou a reflexão sobre a conciliação entre a razão e a fé, que, para ele, jamais poderiam estar em contradição, uma vez que ambas são dádivas da graça de Deus. Ele afirma que a fé é um modo de conhecimento, mas inferior ao tipo de conhecimento que há na scientia, pois esta “conduz o intelecto ao um pela visão e intelecção dos primeiros princípios” (Suma Teológica, parte I, questão 12, artigo 13, ad 3, tradução de Jonathas Ramos de Castro). Surpreendentemente para nós hoje, quando ciência e teologia se distanciaram tanto, o conhecimento científico leva a Deus, de acordo com Tomás de Aquino.

Diante das duas tendências radicais opostas com que se defrontou em sua época – o movimento bíblico das ordens mendicantes e a investigação puramente racional do mundo natural, impulsionada pelo aristotelismo então recém-redescoberto –, Tomás de Aquino não faz opção por uma dessas duas possibilidades extremas, mas “escolhe” ambas, pois “compreende e demonstra a união, ou ainda, a necessidade da associação do que aparentemente excluía uma à outra”, como afirma o filósofo alemão Josef Pieper (1904-1997), um dos maiores especialistas em Tomás de Aquino do século 20, no capítulo 3 de Thomas von Aquin. Leben und Werk.

Essa teologia aberta à razão e à cultura orientou a formação de uma tradição que deu grandes contribuições à civilização ocidental. O monasticismo cristão, nascido no século 3 nos desertos do Egito, inicialmente como um movimento de protesto contra o “mundanismo” infiltrado nos círculos cristãos, em relativamente pouco tempo se modificou e se tornou o principal agente cultural do Ocidente, responsável pelo surgimento de alguns dos maiores eruditos da história, como o teólogo, historiador, escritor e tradutor Jerônimo (347-420).

No século 6, Cassiodoro (496-575) fundou o mosteiro de Vivarium, na atual região da Calábria, na Itália, que introduziu uma novidade entre os monges – o estudo e a cópia de obras clássicas, de autores cristãos e não cristãos. A novidade foi adotada pelos mosteiros beneditinos, que se espalharam por toda a Europa e consolidaram o trabalho de preservação dos textos antigos. Graças a esse movimento, as obras da Antiguidade grega e latina estão disponíveis hoje, como um dos principais legados dos monges copistas. Estes eram intelectualmente tão abertos que não colocaram restrições em sua atividade: copiaram desde os textos sagrados dos Evangelhos e o pensamento pré-cristão do filósofo grego Platão (427-347 antes de Cristo) até as obscenidades do dramaturgo romano Plauto (230-180 antes de Cristo).

Embora não se conheça com clareza a origem do monasticismo cristão na Irlanda, o certo é que aquela ilha do mar do Norte – conhecida como insula sanctorum et doctorum (“ilha dos santos e doutores”) – se tornou um poderoso centro de cultura, que através de seus monges itinerantes irradiou o conhecimento para amplas regiões da Europa. Entre os longevos resultados da atuação desse centro está a obra do teólogo e historiador Beda (673-735), famoso por seu trabalho de cristianização dos povos anglo-saxões, que em razão da sua vasta sabedoria e erudição recebeu o título de “Venerável”.

Também originário do norte europeu era o monge e educador Alcuíno (735-804), admirado como o homem mais sábio da sua época. Conselheiro de Carlos Magno (742-814), ele liderou a fundação de escolas por todo o reino dos francos e, com isso, se tornou um dos principais artífices do chamado “Renascimento Carolíngio”.

No ramo protestante do cristianismo, surgido com a Reforma Religiosa do século 16, a postura em relação à ciência não foi diferente. Num ensaio publicado em 2018, o professor José Antônio Lucas Guimarães demonstrou que o teólogo francês João Calvino (1509-1564), um dos grandes líderes daquele movimento, estimulou uma orientação intelectual que está na base da ciência moderna – diferente do que supõem pensadores como Bertrand Russell (1872-1970) e Thomas Kuhn (1922-1996), para quem o reformador seria um adversário intransigente do pensamento científico. Já o pesquisador Vitor Albiero, numa tese de doutorado na área de História da Ciência defendida na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo em 2016, revelou que a célebre Royal Society – uma das primeiras e mais influentes sociedades científicas da história, fundada em Londres no século 17 – teve como precursor o Office of Address for Communications, instituição criada por cristãos protestantes, entre eles o educador Jan Amos Comenius (1592-1670).

É possível citar várias outras personalidades da história do cristianismo que associaram a teologia com a ciência e a cultura, como as monjas alemãs Rosvita de Gandersheim, que viveu no século 10 e foi responsável pela reintrodução do teatro no Ocidente, e Hildegarde von Bingen (1098-1179), poetisa, compositora e autora de tratados de teologia, medicina e botânica.

Que os cristãos ofendem o Criador quando, em desacordo com seus antepassados, rejeitam a ciência é fácil demonstrar. O célebre prólogo do Evangelho de João, referindo-se a Cristo, afirma (a tradução é minha): “Todas as coisas surgiram através dele, e sem ele nem uma surgiu”.

Ou seja, segundo o evangelista João, tudo o que existe tem origem divina. Isso inclui o mar, o céu, a terra, as pessoas, os animais, as plantas, o amor, a esperança, a alegria, o bom humor, as artes e a ciência. A capacidade dos cientistas de investigar o mundo natural – e, em consequência, criar medicamentos e produtos para uso da sociedade – pode ser vista, assim, como um ato da bondade de Deus, que tem por fim o benefício da humanidade.

É claro que a ciência possui um caráter provisório, e está sujeita a ser “falseada” por novos dados surgidos com o aprofundamento das pesquisas, como explicou o filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994). Mas algumas descobertas são definitivas, como a idade do Universo, calculada em pelo menos 13,7 bilhões de anos – e não em 6 mil anos –, a circunferência da Terra, a eficácia das vacinas e o fato de que remédios produzidos para combater protozoários são inócuos contra vírus.

Atualmente, no Brasil, as Igrejas – com as exceções de praxe – parecem ter esquecido a mais elevada teologia cristã praticada ao longo dos séculos e desprezado a longa tradição de estudos e de apreço pela ciência, da mesma forma como ocorreu em determinados períodos da história, em que líderes religiosos se desvirtuaram desse caminho e promoveram aberrações como a condenação de Giordano Bruno (1548-1600), a atuação do “grande inquisidor” Tomás de Torquemada (1420-1498) e o julgamento do matemático italiano Galileu Galilei (1564-1642).

Isso acontece, em boa medida, porque as Igrejas brasileiras vergonhosamente se submeteram a um político obscurantista, mentiroso, medíocre, defensor de valores contrários ao Evangelho, como a discriminação de minorias, o armamentismo, a indiferença em relação à pobreza e à dor do próximo e o pouco caso com o ambiente.

E não só se submeteram como se colocaram a serviço desse político obscurantista, contribuindo diretamente para atacar e desvalorizar a universidade pública – uma das instituições mais benéficas para o País, como ficou demonstrado ao longo desta pandemia de covid-19 –, perseguir professores e jornalistas, demonizar a arte e a cultura, restringir o acesso ao ensino superior e impor a educação militarizada, uma contradição em termos, equivalente à expressão “círculo quadrado”. Chega a ser estarrecedor: os herdeiros da instituição que gerou Jerônimo, Beda e Alcuíno agora perseguem a universidade, impõem limites à expansão do saber e descaracterizam a educação.

Uma das tristes consequências dessa atitude é a perda da relevância das Igrejas. Elas, que conservam ou conservavam a mais revolucionária, profunda e maravilhosa mensagem existente, capaz de transformar indivíduos e sociedades inteiras – a mensagem do amor de Deus para com os seres humanos e do amor dos seres humanos para com os seres humanos –, se diluíram na mediocridade. Elas, que têm ou tinham a função profética de denunciar as mazelas e injustiças dos poderosos, se reduziram à insignificância. Essas Igrejas cumprem em si mesmas a palavra do Senhor: “Vós sois o sal da terra; se o sal se estragar, em que será pego? Para nada mais tem força senão ser atirado fora e ser pisado pelos homens” (Evangelho de Mateus 5:13).

É urgente o surgimento de um movimento que, denunciando o obscurantismo das Igrejas atuais, recupere o legítimo pensamento cristão – voltado para o cultivo e fortalecimento da ciência, da arte e da cultura – e valorize os grandes feitos da autêntica tradição cristã.

(*)Roberto Carlos Gomes de Castro é jornalista, subeditor de Cultura do Jornal da USP

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