Decifrar o Brasil para um novo ciclo mais civilizado e promissor
Em recente entrevista ao jornal Valor Econômico, o embaixador Rubens Ricupero esboçou um instigante diagnóstico: “O governo Bolsonaro é apenas a última etapa da crise que se torna mais aguda depois de 2013. O atual ciclo, que começou em 1985, já dura 35 anos. Só há dois outros ciclos que duraram tanto, a República Velha e o Segundo Império. Todos os ciclos terminam com instituições esgotadas e sem capacidade de reforma. Hoje, impera a incapacidade de gerir uma sociedade moderna. O problema não se esgota com Bolsonaro”.
O Segundo Império feneceu com o fim da escravidão, que minou suas bases produtivas. A República Velha, sucumbiu em função da oligopolização do poder por São Paulo e Minas Gerais, o fim da política do café com leite. O ciclo de Vargas estendeu-se por 24 anos, de 1930, passando pelo governo Dutra, a 1954, com duas faces, a ditatorial e a democrática. Ganhou sobrevida até 1961, com Juscelino Kubitscheck, sofreu um contra-vapor com o errático Jânio Quadros. Caminhou para o enfrentamento político e institucional no governo João Goulart, que resultou no golpe de 1964. De Castelo Branco a João Figueiredo foram 21 anos de governos autoritários, focados principalmente no desenvolvimento econômico, cujo modelo concentrador, associado ao político, restritivo e repressor, o levou ao esgotamento institucional.
A Nova República, proclamada pelo opositor moderado Tancredo Neves mas, por ironias da história, inaugurada por José Sarney, que desembarcara na undécima hora do regime anterior, nasceu para reinstalar o regime democrático. A grande obra da Nova República foi a Constituição Cidadã, como a batizou o Senhor Diretas, Ulysses Guimarães, que consagrou direitos sociais e recebe, até hoje, críticas dos liberais. Este é o ciclo que está se esgotando, na visão de Ricupero.
Uma das razões, certamente, está justamente em um dos defeitos da Constituição Cidadã. Embalados pelo fim do regime autoritário, os constituintes identificados com as ideias liberais e de esquerda foram tomados pelo espírito de “é proibido proibir” e criaram uma legislação partidária extremamente frouxa. Por conta dela, há no Brasil 33 partidos políticos, uma salada que desestimula a formação de correntes político-partidárias minimamente definidas, desorganiza o debate público e, em função de sua pulverização, permite que parcelas das agremiações existentes funcionem mais como balcões de negócios do que propositoras e defensoras de causas públicas, de interesse do País. A superação desse quadro, um tanto quanto caótico, é um desafio dificílimo na medida em que cabe aos próprios parlamentares legislar sobre o tema.
As manifestações de 2013 são comumente consideradas a pedra de toque para a compreensão da inflexão na caminhada do ciclo atual, que já se caracterizara pelo impeachment de Fernando Collor, a derrubada da, até então indomável, hiperinflação no governo Itamar Franco, capitaneada por, como ministro da Fazenda e na sequência presidente, Fernando Henrique Cardoso, o distributivismo de Luís Inácio Lula da Silva e que vivia um momento confuso sob a batuta de Dilma Rousseff.
A pergunta que se colocava, naquele momento: por que explodiram manifestações contra o status quo se estava instalado no governo um partido voltado para o atendimento das reivindicações da maioria da população?
O capítulo seguinte é o impeachment de Dilma Rousseff, golpe parlamentar para seus defensores, ação legítima e constitucional para seus promotores. Tudo isso permeado por inéditas ações do sistema judiciário contra a corrupção sistêmica no País, que condenou políticos e empresários de uma maneira nunca vista em Pindorama.
O capítulo que está em andamento é a presidência de Jair Bolsonaro, eleito a bordo de uma legenda de aluguel, com uma confusa plataforma eleitoral de extrema direita contra o candidato do PT, Fernando Haddad, uma vez que Luís Inácio Lula da Silva foi barrado pela Justiça em sua pretensão de concorrer – o que gera polêmicas que estão longe de terminar.
O Brasil mudou, a sociedade mudou, é uma das explicações apresentadas para a recente trajetória do regime da Nova República. Sim, mudou, mas como?
Uma interpretação é que o arcabouço político e institucional sacramentado na Constituição de 1988, mesmo Cidadã, não captou, nem embutiu, todas as demandas de uma sociedade que passara por profundas transformações econômicas e sociais desde os anos 1950, se não antes.
Cito algumas, ao meu alcance: urbanização acelerada, desenvolvimento industrial e do sistema de serviços, diversificação religiosa, diversidade cultural, modificação de costumes, novas formas de trabalho e produção, aumento do empreendedorismo, menor dependência de apoios e recursos de governo, maior mobilidade, diferentes pautas reivindicatórias, expansão dos meios de comunicação, integração do País, abertura ao exterior e assim por diante.
Claro, é inescapável destacar a internet e as mídias sociais como a plataforma de expressão dos valores, aspirações, questionamentos, propostas, debates originários dessa nova dinâmica social, eclipsando, inclusive, os tradicionais, e restritos em termos de alcance, meios de comunicação. Hoje, vale a máxima: cada homem ou mulher, um celular, a chave para se comunicar com o mundo, possibilitando a todos entrar diretamente no debate, capacitados ou não. É importante registrar também que, juntamente com essa movimentação e novas formas de comunicação emergiu aos olhos do País uma agressividade e violência, pessoais, social, política, que no passado não se manifestava com tanta nitidez.
Decifrar o significado da expressão “O Brasil Mudou” vai além da interpretação jornalística. É tarefa para sociólogos, economistas, historiadores, filósofos. A contemporaneidade de todos esses fenômenos talvez dificulte o seu estudo, análise, interpretação no momento, apesar de estarmos sofrendo seus efeitos cotidianamente. Mas é urgente decifrá-los para que a sociedade, brasileira e mundial, possa construir novos caminhos, mais civilizados e promissores.
E para que abramos um novo ciclo.
(*) Luiz Roberto Serrano é jornalista e superintendente de Comunicação Social da Universidade de São Paulo.