Desafios para responder emergências sanitárias em uma era de mudança global
De acordo com a base de dados EM-DAT International Disasters Database, 155 países sofreram com pelo menos uma epidemia desde 1970. Estas epidemias, de origem viral, bacteriana, parasitária, fúngica ou priônica, mataram 10 mil ou mais indivíduos, afetando ao menos 100 mil pessoas, e resultando em declarações de estado de emergência, e/ou em pedidos de assistência internacional.
É bem possível que haja muito mais emergências do que estas, uma vez que estas são as relatadas por agências da ONU, organizações não governamentais, companhias de seguros, institutos de investigação, agências de imprensa, entre outras fontes.
Entre estas epidemias, H1N1, ebola, sarampo, meningite, cólera, febre amarela, síndromes diarreicas, febre hemorrágica de marburgo e pneumonia foram as dez principais doenças causadoras de mortalidade epidêmica em todo o mundo. Os países que sofreram mais epidemias foram aqueles em desenvolvimento na África, Ásia e nas Américas, já nos países avançados, as epidemias foram eventos raros.
No caso do Brasil, até 2017, tinham sido registradas 18 epidemias. Há também padrões temporais interessantes. Os dois anos com o maior número de epidemias (112 e 113, respectivamente) foram 2000 e 2002, sendo que em 2002 foi o ano que ocorreu a primeira pandemia do século atual – o surto de Síndrome Respiratória Aguda Grave (sars), causada pelo vírus sars-cov-1, também um coronavírus.
Algumas das epidemias ocorreram em vários países simultaneamente e, em algumas delas não ocorreu transmissão entre os países, mesmo tendo ocorrido simultaneamente – as causas destes acontecimentos permanecem desconhecidas e por investigar. Alguns destes eventos são classificados como pandemias, uma vez que a doença infecciosa se propagou por uma grande região, vários continentes ou em todo o mundo, afetando um grande número de indivíduos.
Desde o início do século 21, a probabilidade da ocorrência de pandemias vem aumentando em virtude de diversos fatores, como o maior fluxo populacional e a intensificação de alterações ambientais. Neste século, já ocorreram seis pandemias: Síndrome Respiratória Aguda Grave coronavírus (sars) em 2003, gripe causada pelo H1N1 em 2009, síndrome respiratória coronavírus do Oriente Médio (mers) em 2012, ebola entre 2013 e 2016 na África Ocidental, zika em 2015 e, mais recentemente, a covid-19 em 2019. A frequência destes eventos também vem aumentando.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) salienta que as pandemias podem ser causadas por ameaças conhecidas, tais como a cólera e a febre amarela, para as quais já existem estratégias seguras e eficazes para uma resposta rápida e controle da transmissão. Estes surtos e epidemias continuam a ocorrer na América Latina e no Brasil, como foi o surto de febre amarela que ocorreu predominantemente na região Sudeste do País (Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro) entre 2016 e 2017. Essas eram áreas até então não priorizadas para a vacinação em virtude de suas características socioambientais, mas registraram nesse período o pior surto da doença nos últimos 80 anos.
Este surto foi desencadeado pela transmissão do vírus causador da doença entre macacos que habitavam áreas florestais contíguas às maiores densidades populacionais do País na região Sudeste. Neste caso, a doença manteve o ciclo silvestre, sendo transmitida pelos mosquitos Haemagogus e Sabethes para os macacos, e o homem era um hospedeiro acidental.
A epidemia da febre amarela, muito provavelmente, esteve associada a distúrbios ambientais em associação com características da ocupação dessas áreas, o que reforça a diversidade e sinergia das causas de surtos e epidemias de doenças infecciosas. Na medida em que continuamos a negligenciar as mudanças climáticas e a vigilância ambiental de agentes patógenos selvagens com potencial risco para as populações humanas, aumentamos os riscos de novas epidemias causando emergências sanitárias.
Existem desafios únicos e distintos causados por agentes patogênicos de alto risco, para os quais o mundo não tem contramedidas. Esses agentes podem surgir através de extravasamento zoonótico, ou seja, da transmissão entre espécies silvestres e domésticas e entre estas e a espécie humana (spillover) ou ainda, por escape acidental ou deliberado. O sars-cov-2 é um exemplo de patógeno até então desconhecido que apresenta alto risco à saúde humana, embora não seja o primeiro caso.
Uma das características excepcionais da pandemia da covid-19 é o rápido desenvolvimento de vacinas. De fato, ao contrário da covid-19, não foram desenvolvidas vacinas comerciais eficazes para os coronavírus da sars e da mers, havendo o controle dessas doenças sem o desenvolvimento de imunizantes em 2002/2003 e em 2012, respectivamente, mesmo tendo sido consideradas emergências sanitárias.
A pandemia causada pelo HIV, um vírus detectado pela primeira vez no início da década de 1980 e para o qual ainda não foram encontradas vacinas eficazes, é uma situação mais complexa. No final de 2021, 33,9 e 43,8 milhões de pessoas viviam com HIV de acordo com as estimativas da OMS. Não há vacina eficaz, sendo que as estratégias de prevenção além da vacinação vêm apresentando resultados promissores no caminho de erradicar essa doença, mas foram necessárias décadas, milhões de vidas perdidas, grande trabalho dos ativistas e organizações comunitárias para construir programas de prevenção e tratamento da doença.
Hoje assistimos a uma revolução na forma como o HIV é tratado, o que envolve um conjunto complexo de intervenções, incluindo testagem, profilaxia pré e pós-exposição, tratamento com antirretrovirais e programas para incentivar a maior aderência ao tratamento entre indivíduos soropositivos.
Tal como estas emergências sanitárias passadas, dada a magnitude do seu impacto, a pandemia de covid-19 expôs falhas na capacidade de respostas das autoridades responsáveis pela saúde pública. Há um consenso crescente de que os quadros existentes são de âmbito limitado e não consideram suficientemente fatores sociais, econômicos, políticos, regulamentares e ecológicos complexos. Muitos países melhor classificados em métricas independentes que avaliam o grau de preparo nacional para uma resposta frente a uma epidemia, tais como Índice de Segurança Sanitária Global e Índice de Preparação para a Epidemia, são os países que tiveram maiores taxas infecção e mortalidade de covid-19.
As ferramentas de preparação para pandemias são fracas em não considerar fatores como a boa liderança, a confiança pública no governo e nos especialistas, o compromisso da sociedade em praticar a solidariedade comunitária e as diferenças entre os interesses privados e públicos que contribuem para a saúde e resiliência da população. Muitos destes fatores são difíceis de medir e ainda mais difíceis de mudar a curto prazo durante uma emergência sanitária.
Por exemplo, enquanto os esforços para medir as políticas públicas decretadas para aumentar o distanciamento social foram bem-sucedidos e incorporados na modelação matemática para prever a evolução dos casos e mortes, menos progressos foram feitos no monitoramento da implementação de melhorias de segurança no local de trabalho e em ambientes educacionais. Um melhor monitoramento e esforços de fiscalização permitiriam a reabertura destes locais com práticas que não só reduziriam a probabilidade de futuras infecções pelo sars-cov-2, mas também de futuros surtos de outras doenças infecciosas.
A resposta à pandemia de covid-19 continua a ser ainda mais complicada porque existem diferenças acentuadas entre as capacidades e recursos de segurança sanitária disponíveis para os países desenvolvidos e as necessidades de segurança sanitária dos países em desenvolvimento. A maioria das vacinas que salvam vidas e são rapidamente produzidas continuam a ser demasiado dispendiosas para muitos países em desenvolvimento. Uma parte importante dos indivíduos que vivem em sociedades de baixos rendimentos tem ainda de receber três doses de vacinas.
A maioria dos países em desenvolvimento que adquiriram os inputs críticos para responder à pandemia o fizeram através da atribuição de recursos que ultrapassam em muito os recursos habitualmente gastos em saúde pública. Outro fator que dificulta a continuidade da resposta à pandemia de covid-19 é a presença de epidemias persistentes e endêmicas em diferentes regiões do mundo, mas principalmente nos países em desenvolvimento.
Muitos países, incluindo o Brasil, vivem com epidemias e surtos de doenças infeciosas como a dengue e a malária, que têm apresentado casos e mortes recordes em algumas regiões, concomitantes com a continuação da pandemia de covid-19, agora no seu quarto ano. De fato, houve 1.450.270 casos prováveis de dengue registados no Brasil em 2022.
Os prováveis casos de chikungunya e zika também registaram sinais preocupantes. Houve um aumento de 78,9% na contagem de casos de chikungunya em 2022, quando comparado com o mesmo período em 2021 – que já era 32,7% mais elevado do que no ano anterior. Nos casos do zika, o aumento foi de 42% no ano passado. Tudo isto enquanto, foram comunicados números recorde de infecções por sars-cov-2 com a chegada da variante ômicron.
Uma vez que cada emergência sucessiva tem o seu preço na vida humana e no ecossistema, a nossa capacidade de trabalhar para proteger os mais vulneráveis depende de uma liderança empenhada no bem público. Quando isto falta, ou interesses econômicos poderosos se lhe opõem, a resiliência para aderir aos princípios de solidariedade rapidamente se corrói.
Muitas vezes, são necessários vários anos, se não décadas, para que as sociedades transitem para líderes empenhados em dar prioridade ao bem-estar da população. Além disso, muitos dos fatores que representam o maior risco para aumentar a probabilidade de futuras emergências de saúde são endógenos. Dada a má gestão da resposta da covid-19 na maioria dos países, as sociedades têm-se habituado cada vez mais a viver com um grande número de infecções e mortes. Ironicamente, isto tem reduzido a aderência e o apoio público às políticas necessárias para pôr fim à pandemia.
Estas políticas incluem investimentos em muitos programas cujos benefícios não vemos, tais como medidas de prevenção de doenças de custo relativamente baixo, e cujas ligações a epidemias podem não ser tão simples para o eleitor médio, tais como a vigilância ambiental.
Quando os programas estão funcionando eficazmente, não vemos a epidemia que foi evitada, de modo que não valorizamos estes programas. Isto também significa que os nossos países se tornaram altamente dependentes de políticas nacionais e supranacionais, tais como vacinação, e cooperação global em domínios políticos para além do setor da saúde, tais como políticas ambientais e econômicas.
Em outras palavras, necessita-se construir relações internacionais baseadas na confiança e cooperação entre países para enfrentar os desafios colocados pelo controle de doenças emergentes, tais como a covid-19, sars e mers, e doenças reemergentes, tais como febre amarela, sarampo e poliomielite, e doenças endêmicas, tais como malária e dengue.
Quanto mais líderes comunicarem estes desafios e trabalharem para atingir estes objetivos, menos ênfase será dada a suas declarações de vitória e pífios êxitos junto à comunidade global.
(*) Lorena Barberia é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.