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Dissertação sobre o aborto

Elisabeth Spinelli e Jean Pierre Chauvin (*) | 21/01/2021 13:07

Quem já lecionou em colégios, cursinhos ou universidades, pelo menos uma vez na vida, terá deparado com aquela situação em que se viu na necessidade de fomentar o debate de seus alunos com vistas a estimular a reflexão, considerando múltiplos pontos de vista sobre assuntos considerados polêmicos. É provável que um desses temas espinhosos seja a legalização ou a criminalização do aborto.

Descontados os achismos – até certo ponto aceitáveis, em jovens com pouco ou nulo conhecimento sobre a sexualidade e a interrupção da gravidez –, a experiência dos mestres ensina que a discussão em torno do aborto quase sempre é contagiada por questões de natureza moral, ética, política e sanitária.

Em nosso país, discussões sobre a interrupção da gravidez são inflacionadas pelo componente moralista e o fator político, quase sempre de cunho conservador, aderente a determinadas pautas que interessam à extrema direita. De maneira geral, os concidadãos contrários ao aborto desprezam os direitos assegurados em lei e/ou ignoram o que a ciência já descobriu há décadas, a saber: as primeiras semanas de gestação não implicam a morte de uma criança. Em termos médicos, e legalmente falando, o estágio embrionário não é sinônimo do estágio fetal; nem o feto é sinônimo de criança plenamente desenvolvida.

Outro aspecto fundamental diz respeito à carência de campanhas de esclarecimento e políticas sanitárias que assegurem o direito de a mulher interromper a gravidez, nos termos já previstos em lei. Vejamos o que diz o Código Penal brasileiro de 1940:

“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

Isto posto, seria oportuno contrastar duas situações, certamente familiares à(ao) leitor(a): 1) a operação de guerra montada por adeptos do desgoverno federal, contra a intervenção realizada em uma menina de dez anos, que fora estuprada pelo tio; 2) a aprovação de um “projeto de lei que legaliza o aborto no país”, aprovado pelo Senado argentino em 30 de dezembro de 2020.

O caso que envolveu a vítima, seus familiares e médico beirou a tragédia e ultrapassou qualquer limite de racionalidade. Apesar de a jurisprudência prever o procedimento abortivo em situações absurdas, como aquela que afligiu a criança que vive no Espírito Santo, o médico foi obrigado a transferi-la para o Estado de Pernambuco, para concluir a intervenção.

Já a decisão adotada pelo Senado da Argentina preencheu as redes sociais com comentários hediondos, em nome da suposta moral; juízos de valor, em nome da velha hipocrisia que costuma adornar discursos de homens e mulheres – perfeitamente capazes de ignorar os apelos de famílias inteiras, vulneráveis e em precaríssima situação socioeconômica e sanitária, a vagar sem acolhida pela cidade.

A questão vai mais longe. Supondo que caiba não ao cidadão, mas ao Estado, prover e atender às demandas das pessoas – especialmente aquelas que não têm o que comer, o que vestir e onde morar –, causa espanto que ainda haja indivíduos a repetir bordões falaciosos e condenações prévias, sem considerar as razões que levaram crianças e adultos ao ambiente inóspito e desolador da sobrevivência nas ruas.

Poderíamos estender a analogia ao aborto. Assim como não se pode supor que uma pessoa esteja satisfeita por viver em meio às misérias (tampouco condená-la por não ter logrado “vencer na vida”), não há cabimento em atribuir à vítima do estupro a responsabilidade do tio que a estuprou (menos ainda condená-la por suposta precocidade sexual ou “desejo” de ser violada).

A prática do aborto, ilegal ou não, é universal e antiga. Dados da Organização Mundial de Saúde revelam a ocorrência, entre 2010 e 2014, de cerca de 55 milhões de abortos no mundo, sendo que 24,75 milhões (45%) desses foram realizados em situações de insegurança, e 50 milhões em países em desenvolvimento.

As estimativas no Brasil são imprecisas, principalmente porque grande parte dessas intervenções são feitas em situação de ilegalidade, que penalizam duplamente as mulheres que recorrerem ao aborto. Dados parciais como os da Pesquisa Nacional de Aborto, feita através de levantamento domiciliar com mulheres de 18 a 39 anos, combinando entrevistas presenciais e uso de urnas, e amostragem representativa do Brasil urbano de 2016, indicam que o aborto é frequente e persistente, ocorre em todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões. 20% das mulheres entrevistadas fizeram aborto pelo menos uma vez. Estima-se que, em 2015, aproximadamente meio milhão (416 mil) de brasileiras se expuseram a práticas abortivas.

Levantamento baseado em indicadores indiretos permite traçar o perfil da mulher que corre maior risco de óbito por aborto no país. É negra ou indígena, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, habitante do Norte, Nordeste ou Centro-Oeste do País, e sem companheiro. Como previsto são a menina e a mulher adulta sem amparo social, das classes sociais menos favorecidas.

O cenário europeu mostra como a questão é complexa e ainda não resolvida, mesmo em um continente com tanta diversidade cultural. A experiência da Suíça chama a atenção porque resultou em um país com uma das mais baixas taxas de aborto do mundo, ao redor de 5/1.000 mulheres. Os valores se mantêm abaixo de 10/1.000 há algumas décadas, com mudanças paulatinas na legislação, que desde 2002 tornaram legal o aborto feito nas primeiras 12 semanas de gravidez, com cobertura pelo sistema nacional de saúde do país. Estudos comparativos feitos a partir dos primeiros registros, nos anos 1970, mostram que os principais fatores responsáveis pelo número baixo da gravidez indesejada e de abortos são, além do nível socioeconômico relativamente alto da população suíça, o amplo uso de contraceptivos, inclusive da pílula do dia seguinte, e um contínuo e abrangente esforço na educação sexual precoce.

Enquanto a Argentina modifica a sua legislação no sentido de ampliar direitos da mulher com relação ao próprio corpo, os retrocessos no Brasil são visíveis, e bem ilustrados tanto no caso da criança de dez anos estuprada por membro da família, como nas manifestações públicas decorrentes das mudanças promovidas na Argentina. Também é preocupante a opção de se dar ênfase à abstinência ao invés do conhecimento do corpo e suas fases de desenvolvimento, assim como técnicas contraceptivas, na prevenção da gravidez indesejada por órgãos de políticas públicas do presente governo.

Como já se explicou exaustivamente, a interrupção da gravidez é um direito previsto no Código Penal e demanda investimento do Estado, de maneira a assegurar a realização do procedimento, recorrendo aos métodos mais seguros para a paciente/vítima. Pseudo-argumentos de natureza dogmática e moralismos de ocasião não podem anular o debate em torno das políticas públicas de assistência à menor e à mulher, pois se trata de questão sanitária (e não de celeuma inquisitorial).


(*) Elisabeth Spinelli de Oliveira é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP) e Jean Pierre Chauvin é professor da ECA/USP

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