E agora, como será a vida nas cidades?
A vida como conhecíamos acabou. A covid-19 antecipou a já prevista ruptura do nosso modo de vida urbano. Termos como vulnerabilidade e resiliência antes relacionados mais estritamente a estudos climáticos, agora estão sendo duramente testados na prática por um inimigo invisível. Diferentemente das mudanças climáticas, contra o covid-19 há expectativa que uma vacina seja disponibilizada de 6 a 18 meses.
Com o sistema público de saúde e pesquisa minimizados e sobrecarregados, não há outra saída senão a adoção de fortes medidas para limitar o contato social da população. O modelo matemático de uma equipe de pesquisa do Reino Unido prevê quase meio milhão de mortos no Brasil caso falhemos com as medidas de isolamento social impostas para mitigar a pandemia do covid-19.
Portanto a ficha deve cair que as pessoas ficarão muito mais em casa de agora em diante. E isso não deve acontecer por apenas poucas semanas. Mas sim por meses! Ou até que a imunização cubra o mundo todo. É o que discute especialistas como Ann Forsyth em seu artigo publicado pela Harvard Graduate School of Design. Até porque não se sabe como será o comportamento da pandemia após essa primeira onda de contaminações. Uma nova onda de contaminações é algo muito provável de acontecer principalmente nos países em desenvolvimento. E não está descartada a possibilidade do covid-19 sofrer uma mutação até que a vacina chegue até nós.
E como ADAPTAR-SE aos efeitos que a pandemia traz de imediato em nossa vida urbana?
É difícil falar de prioridade em garantir acesso universal à internet quando se prevê que cidades e bairros a serem mais duramente castigados pela pandemia serão aqueles sem provisão adequada de água e saneamento. Além disso, mais de 13 milhões de brasileiros vivem em comunidades precárias sem condições ideais de isolamento devido ao seu “layout”. Tecidos urbanos super adensados com construções de baixa qualidade, onde vivem muitas pessoas juntas em imóveis dotados de pouca ventilação e mofo, tendem a tornar dramática a luta contra esse vírus. Problemas urbanos estruturais como esses vêm sendo colocados em segundo planos há tempos.
O ataque desse vírus causou uma pane na estrutura política, social, econômica e psicológica do mundo todo. A gravíssima recessão econômica é certa, e arrojadas medidas macro e microeconômicas devem ser tomadas para proteger os mais vulneráveis uma vez que os piores impactos da pandemia serão sentidos pelos que dispõem de menos recursos. Além disso, os que mais rapidamente aceitarem o fato que este distanciamento social, fechamento de escolas, universidades, comércios e serviços é o novo normal poderão se adaptar mais rapidamente e continuarem existindo.
Nesse sentido, a adaptação é mais do que nunca uma função de redesenho da vida como a conhecemos. Pequenos exemplos já são vistos em supermercados de áreas nobres, como adoção de escudos em acrílico transparente para separar os operadores de caixa da clientela e limites de acesso a um número reduzido de pessoas. Parques fabris talvez devam alterar suas disposições físicas considerando a distância segura entre os postos de trabalho para evitar contaminação. O velho “business-as-usual” pode não resistir ao covid-19. Empresas e governos precisam aceitar isso e prover ferramentas para que sua força de trabalho atue remotamente.
No fim das contas, é mais econômico e saudável não ter grandes concentrações de pessoas consumindo diariamente água, energia e insumos nos locais de trabalho. Além disso, poucos são os prédios públicos e privados capazes de continuar a operar mantendo as pessoas em distância segura umas das outras, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso requer uma mudança radical de cultura e implantação de infraestruturas como as de acesso universal a internet rápida, a toque de caixa.
Comunicar e transacionar produtos e serviços eletronicamente é um gargalo para os pequenos comerciantes e trabalhadores informais que antes dependiam do contato social. A inclusão digital de micro e pequenos negócios via aplicativos ou websites será fundamental para mitigar o risco iminente de falências e desemprego. A capacitação é urgente, ainda que não seja algo de tão curtíssimo prazo. Afinal, muitos comerciantes ainda nem sabem como usar a máquina de cartões. Treinamento em comércio eletrônico, automação industrial e predial, web design, criação de aplicativos de baixo custo e estratégias de mídias sociais para girar a economia local podem favorecer a geração de renda aos jovens de periferia.
A severa restrição de circulação de pessoas, algo supostamente passageiro, deveria ser uma oportunidade para incentivar o consumo local, portanto serviços de entrega (delivery) devem ser fortalecidos (razão para implantação de mais ciclovias). Pagamentos online e aqueles que evitem a necessidade de digitar as senhas serão tendências e devem ser facilitados pelos bancos.
As pessoas ficarão mais em casa e trabalharão mais de casa. Isso é uma mudança sem precedentes no Brasil e que pode se tornar uma tendência difícil de reverter. Mas não acredito que a maioria das pessoas em quarentena disponham de residências construídas de forma saudáveis, com espaços amplos para crianças brincarem, bem ventilados, dotados de conforto térmico, acústico, lumínico e paisagístico. Essa combinação de diretrizes arquitetônicas que visam propiciar “prazer de se estar em casa” é geralmente atropelada nas cidades brasileiras e vista como luxo, devido ao custo do metro quadrado seguir a lógica do mercado e não a lógica da saúde.
Para termos cidades saudáveis precisamos ter residências saudáveis. Mesmo assim, nada garante que aqueles que já possuem acesso a tudo isso passarão ilesos por este período. Portanto, outra medida imediata de adaptação pode ser sugerida: a provisão universal de acesso remoto à cuidados de saúde psicológica. A convocação dos profissionais da saúde talvez sinalize este rumo. Pessoas idosas ou não, que já se sentiam isoladas, devem enfrentar tempos muito difíceis adiante.
De maneira muito interessante, a prioridade da mobilidade urbana também mudou! Agora a prioridade deve ser evitar aglomerações. Transportes públicos precisam re-planejar as frequências de circulação para evitar aglomerações em ônibus, vagões de metrôs e trens metropolitanos, algo que será um desafio grandioso para cidades. Bicicletas podem ajudar na mobilidade em tempos de pandemia caso passemos a trabalhar e consumir mais localmente, de forma menos centralizada, percorrendo menores distâncias.
Assim sendo, os horários de pico devem ser extintos imediatamente! As jornadas de trabalho devem ter horários diferentes de entradas e saídas, para evitar aglomerações. Esse redesenho, ao mesmo tempo, deve mudar a cara de muitos centros comerciais que ficam desertos após o horário comercial. A implantação de ciclovias com traçados eficientes também se mostra fundamental para a saúde e para a economia nesse momento.
O padrão de uso de clubes recreativos e espaços públicos destinados a práticas esportivas precisam ser repensados. Os sistemas de ventilação dos prédios públicos e comerciais, redesenhados à luz do bioclimatismo, que busca reconciliar o ambiente construído aos elementos do ambiente natural.
Claro que estratégias de conforto térmico para edificações em Teresina são bem diferentes das de Brasília ou São Paulo. Mas convenhamos, valeria a pena questionarmos criticamente aquele popular estilo europeu de prédios com fachadas envidraçadas, quase “sem janelas” e altamente dependentes de ar-condicionado. Filtros de ar-condicionado tradicionais não eliminam vírus.
Também é preciso evitar que as cidades se expandam descontroladamente, invadindo habitats selvagens e alterando microclimas. Esse tipo de crescimento urbano coloca a nós, humanos, na linha de frente com inúmeros vetores de doenças. Não me espantaria que esse vírus covid-19 tenha se beneficiado de alguns milésimos graus de aumento da temperatura para saltar de espécie e sorrateiramente infectar todo planeta.
O combate ao consumo e tráfico de animais silvestres devem ter penas elevadas a níveis hediondos. Ou seja, garantir a preservação do meio ambiente é também crucial para mitigarmos os riscos de novas pandemias. Um tanto óbvio, não? Parece que esse vírus veio impor, sem mais negociações, o modelo de vida mais sustentável a se seguir. Além dessas poucas reflexões discutidas aqui, quais seriam as medidas não óbvias de adaptação a uma pandemia em todas as escalas da vida urbana? Essa pergunta deveria nortear os gabinetes dos tomadores de decisão rumo à verdadeira resiliência, pois o fim da história do corona vírus é incerto.
O que é sabido até o momento somente diz respeito aos impactos negativos dessa pandemia. Claro que nada é para sempre e essa pandemia um dia também vai passar. Por que, então, não aproveitamos a imediata necessidade de adaptação e passamos a fazer o que a ciência entende como “socioambientalmente” correto, tanto nas cidades quanto em empresas e governos? Esta crise humanitária sem precedentes tem potencial para mudar toda configuração da vida como estávamos acostumados. Dinheiro e recursos para transição rumo a sustentabilidade e um futuro resiliente a choques como esse existem sim! Temos visto os rearranjos e socorros nos noticiários destas últimas semanas.
É como irretocavelmente colocado por Eliane Brum: “Apocalipse e Gênesis estão em nossas mãos nesse momento”. Se conseguirmos escapar da nossa insuportável capacidade de nos acostumar ao pior, enxergaremos a real chance de mudar nossa destrutiva trajetória e ir rumo a uma interação ética e justa entre povos, cidades e natureza.
(*) Abner Luis Calixter é gestor, doutorando na Universidade de Brasília, mestre em desenvolvimento internacional sustentável, consultor em estratégias de adaptações com experiência internacional de pesquisa nas universidades de Harvard, MIT, Brandeis e Erasmus Rotterdam