É tanta coisa para tão pouco corpo
Há exatamente um ano vivíamos os primeiros sinais da chegada da covid-19 no Brasil. O que primeiramente era uma notícia vinda de longe passou a ser um alerta, uma preocupação, um desespero e, enfim, um esgotamento. Se as imagens da China, especialmente de Wuhan, eram ainda imagens longínquas para nós, foi preciso que o vírus chegasse à Itália para que nos déssemos conta de que o problema viria a ser rapidamente nosso. Se a Itália, que era a Itália, estava vivendo aquele caos sanitário, imagina a gente no Brasil – era o que pensávamos. As imagens dos primeiros lockdowns europeus nos deixavam sem palavras. As ruas vazias de Roma, Paris, Lisboa e Barcelona não deixavam dúvidas de que era apenas uma questão de tempo. Quando chegar aqui, será uma catástrofe com proporções inimagináveis. Os números e gráficos cada vez maiores e crescentes mostravam uma realidade incontornável. Há um ano vivíamos com essa sensação de que o pior estaria por vir, mesmo sem saber o que de fato seria esse pior.
E o vírus enfim chegou às nossas casas. Das telas dos nossos celulares e televisões acompanhávamos em tempo real o número de mortos e infectados em cada um dos estados brasileiros, a situação em cidades e bairros, até que fossem tomadas as primeiras medidas sanitárias que acabariam por impactar de maneira decisiva em nossas vidas. Há um ano o vírus chegava enfim às nossas casas não mais como uma notícia vinda de longe, mas como uma presença com a qual teríamos que efetivamente lidar. Conviver com a ameaça do vírus implicaria viver uma vida jamais vivida ou mesmo imaginada. Ansiedade e angústia passaram a fazer parte do vocabulário sentimental dos nossos corpos confinados – confinamentos físicos e também psíquicos. Mesmo para aquelas e aqueles que não tinham a chance de praticar o isolamento social restava o medo de ser infectada(o) e de infectar as pessoas que amavam se, ao retornarem de seus trabalhos, trouxessem o vírus para dentro de suas casas.
Quem estava na rua se sentia culpada(o), querendo a todo custo retornar para casa. Quem estava em casa se sentia angustiada(o), querendo a todo custo sair para a rua. O certo é que ninguém se sentia de fato confortável no lugar onde estava. Na psicologia dizemos que a experiência de não caber no espaço onde se está é um tipo de sofrimento capaz de enlouquecer. E acabamos enlouquecendo, alguns mais, outros menos. Em conversa com uma estudante de graduação da UFRGS, ouvi uma frase que me marcou bastante e que parecia traduzir muito bem essa experiência de não pertencimento. É tanta coisa para tão pouco corpo, me dizia a estudante em meio a crises de pânico e noites insones.
E aí entramos em uma série de rituais para tentar lidar com o tanto de intensidade que nos invadia. Viramos seres mascarados, tivemos que nos tornar pessoas obsessivas. Colocar máscara, lavar máscara. Colocar sapato, tirar sapato. Fizemos do álcool gel nosso arroz com feijão. E viramos espectadores de lives, tentando buscar uma normalidade de prazer como se vivêssemos uma espécie de férias forçadas. Na ambiguidade que marca o ser humano – sim, somos seres marcados por sentimentos contraditórios, já dizia Freud –, ficamos um pouco eufóricas(os) no início do isolamento social. Enfim tínhamos tempo para limpar e organizar a casa, para curtir nossos gatos, cachorros e família. Apelamos às tele-entregas de todos os tipos. Nunca comemos tanto e de tantos tipos bolos, pizzas e fast-foods . Nos tornamos também gourmets, aprendemos a cozinhar pratos novos com receitas que se espalhavam pela internet. Adquirimos coisas inimagináveis pelos grandes sites de compras. O supérfluo, característica principal da sociedade de consumo em que vivemos, tornou-se, enfim, palavra de ordem e de gozo. Compramos pijamas, moletons, moedores de café, móveis, eletrodomésticos, televisões e tranqueiras de todos os tipos. Em meio às tantas coisas que comprávamos, nos tornávamos também um pouco dessa tranqueira toda. Assim como as coisas que chegavam pelo correio, nos víamos também como produtos supérfluos. Experimentamos também diferentes práticas físicas e espirituais. Nos tornamos atletas de apartamento, ginastas de sala e quarto. Compramos tapetes, tênis e roupas de ginástica, cada uma mais colorida que a outra. Baixamos aplicativos de meditação. Nos tornamos iogues de youtube. Nosso mantra cotidiano passou a ser o do vai passar.
Passamos a viver uma vida virtual. Aulas virtuais. Trabalho virtual. Reuniões virtuais. Compras virtuais. Consultas virtuais. Lazeres virtuais. Amores virtuais. Nos tornamos seres virtuais. Nem mesmo nas reuniões de família deixávamos a virtualidade de lado. Fazíamos chamadas de vídeo para nossos pais, filhas(os) e avós.
Tentávamos aparecer sorrindo no quadradinho da tela para não deixar que as pessoas que tanto amávamos soubessem da dor que sentíamos com aquela distância toda. No fundo, sabíamos que aquela vida virtual não era a mesma coisa, que estávamos perdendo toda uma vida de verdade – aquilo que nos era mais precioso e a que até aquele momento talvez não tivéssemos dado tanta bola. Vivíamos na pele a dor que era sentir saudade – uma dor que não nos deixava dormir, que apertava o nosso peito, que nos fazia chorar sem motivo aparente. Nos tornamos seres à flor da pele.
O final do ano chegou com a notícia da vacina. Voltamos a ficar eufóricos, vimos uma grande luz no fim do túnel. Aquilo que no início do ano era apenas uma promessa acabou se tornando uma verdade. Assim como no início da pandemia vimos a realidade primeiramente de longe. A cada braço europeu ou estadunidense sendo vacinado, vibrávamos junto. Mesmo em um país tristemente orientado pelo pensamento negacionista, era uma questão de tempo para que fôssemos também vacinadas(os). E ainda por cima era final de ano, um sinal de que 2021 seria diferente e de que 2020 tinha enfim ficado para trás. E tínhamos as festas de Natal e réveillon, e tínhamos também um verão a nos esperar. Esse mix de coisas boas nos encheu de coragem. Aproveitamos para fazer pequenos encontros presenciais com as pessoas amadas com o espírito de que tínhamos enfim entendido o funcionamento do vírus e as estratégias para dominá-lo.
E 2021, então, chegou. Em lugar da vacina, o que presenciamos foi a chegada de uma segunda onda ainda mais violenta que a primeira. Só que, em vez do mar, o que esta onda nos trouxe foi uma angústia que achávamos já ter enterrado. Nos mesmos noticiários que há um ano nos mostravam a chegada do vírus, passamos a assistir profissionais da saúde novamente desesperados diante de tantas pessoas à mercê da fragilidade que é ser brasileira(o) em um tempo como este. Nos sentimos tristes, desesperadas(os) e, principalmente, injustiçadas(os). O que mais temíamos em 2020, o tal colapso do sistema de saúde e sanitário, enfim, havia chegado. Passamos 2020 inteiro na iminência do caos. A cada mês, a sensação de que ele iria chegar. Em abril iria colapsar. Em maio. Em julho. Não por ironia, foi preciso que o ano virasse para que o colapso de fato chegasse – junto com vacina (que paradoxo!). Quando achávamos que os ventos estavam, enfim, a nosso favor, o que vimos foi uma grande bandeira preta sendo acenada para nós, muito pior do que o pior que tínhamos já experienciado.
Será que iremos aguentar? A pergunta é difícil, mas tendo a respondê-la que sim. Cabe a cada um(a) de nós avaliar o ponto onde se está, o que foi possível construir ao longo de um ano de luta.
Mais do que um vai passar, temos a memória do que já passamos, das dificuldades enfrentadas e das soluções que encontramos para lidar com elas. Se tivermos que retornar aos nossos rituais, que assim seja. Assim como aprendemos com a filosofia que nunca nos banhamos em um mesmo rio – dado que estamos, junto com o rio, em permanente mudança –, cá estamos novamente confinadas(os) em casa ou obrigadas(os) a trabalhar em meio a tanto risco e ansiedade. No entanto, já não somos as(os) mesmas(os) de há um ano. Passamos por uma série de provas que colocaram nosso corpo e mente em xeque.
Se você está lendo este texto é porque está viva(o), é porque você sobreviveu às mais de 250 mil vidas que injustamente não tiveram essa chance. Ainda concordo com a estudante de graduação da UFRGS sobre ser tanta coisa para tão pouco corpo. A diferença é que agora sabemos um pouco mais do que nosso corpo é capaz, de que, ao cuidarmos dele, estamos cuidando também das(dos) outras(os), e isso não é pouco.
(*) Luciano Bedin da Costa é professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. É um dos editores de O Onírico: o primeiro jornal onírico-político do Brazil.