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Em defesa do SUS e da vida

Maria Ceci Misoczky (*) | 18/12/2020 09:12

O Sistema Único de Saúde é uma produção social que, como não poderia deixar de ser, carrega as marcas das contradições que definem o Brasil em sua história recente. Fruto de um movimento e de um projeto transformador, desde o início de sua trajetória organizacional se enreda nas tramas do aparelho de Estado e de interesses que nele se representam.

O campo da atenção à saúde que se configura no texto da Constituição de 1988 incorpora as posições doutrinárias defendidas pelo Movimento Sanitário: a conquista da saúde decorre de políticas econômicas e sociais que diminuam ou eliminem os riscos de doenças e outros agravos e de ações setoriais específicas para a promoção, proteção e recuperação da saúde; a saúde como um direito de todos e dever do Estado; um sistema com comando único em cada esfera de governo, organizado em rede regionalizada e hierarquizada e sob controle social. A força do Movimento e da rede de atores que se articulou em defesa da Reforma Sanitária precisa ser sempre valorizada, especialmente quando se recorda que os avanços obtidos foram na contramão da crise do Estado social, da redução de direitos de cidadania garantidos por políticas públicas e da hegemonia de reformas gerencialistas do aparelho de Estado que ocorriam desde a década de 1970 no contexto anglo-saxão e se disseminavam globalmente por meio das prescrições e condicionalidades das agências internacionais de financiamento.

Ainda que essa tenha sido a mais importante mudança realizada no campo das políticas sociais em um contexto democrático, também há que se considerar que as dificuldades que se seguem para implementar o ideário reformista terminam por defini-la, cada vez mais, como uma espécie de reforma administrativa. Essas dificuldades resultam, como Sonia Fleury indicou já em 1988, da natureza do dilema reformista. A reforma sanitária não pode ocorrer fora do aparelho de Estado, mas ao inserir-se nele os atores sociais não alcançam transformá-lo. E não o fazem também porque, após a formalização do SUS no texto constitucional, a estratégia para implementá-lo foi de cima para baixo, privilegiando a arena tecnoburocrática e afastando-se da base popular que estava presente na origem do Movimento Sanitário.

A trajetória que segue é de conhecimento de todos. Ainda que as tentativas de retirar do texto constitucional a determinação de que a saúde é um direito universal e um dever do Estado tenham sido derrotadas, o SUS foi sendo reformado por dentro e por determinações externas. Assim, o direito se transforma em ações focalizadas para pobres e suas famílias; o dever do Estado pode ser executado por organizações sociais, terceirizações ou parcerias público-privadas; o controle social é cada vez mais uma formalidade, e quando não o é, como exemplificam as intervenções do Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre e do próprio Conselho Nacional de Saúde em muitas oportunidades, suas deliberações tendem a ser ignoradas ou negligenciadas; a descentralização com comando único em cada nível de governo vai sendo gradativamente solapada pela concentração das definições sobre a organização da atenção em normas operacionais controladas pelo Governo Federal, que centraliza os recursos financeiros. Nesse contexto, se organizam movimentos em defesa do SUS que, em sua maioria, no entanto, seguem presos ao dilema reformista. É sem dúvida importante defender o caráter público do Sistema, mas isso não é suficiente, como a história e o momento que vivemos têm demonstrado.

Desde março, mais de 170 mil mortes por coronavírus foram registradas, com maior impacto sobre pessoas negras, pobres e vulnerabilizadas. O Ministério da Saúde, que se constitui coordenador nacional do SUS, ativamente assume a omissão e/ou a sabotagem. O pacto federativo é utilizado como argumento legal para justificar a inação de um governo que escolhe não combater a doença e a morte; recursos financeiros não são transferidos para estados e municípios; ameaças privatizadoras da rede básica e ataques aos servidores e aos serviços públicos completam um quadro de irresponsabilidade e geram ainda mais instabilidade.

Para agravar ainda mais a situação, vivemos sob a ameaça de que o Ministério da Saúde se omita na sua função de coordenador do Programa Nacional de Imunizações e não mobilize a experiência acumulada em campanhas massivas de vacinação. Além desse quadro dramático com relação à pandemia, vivenciamos, nestes últimos dias, ações do Governo Federal visando à destruição da Política de Saúde Mental, que resultou de uma construção coletiva na qual a luta antimanicomial foi central.

Aprendemos, de forma dramática, que é imprescindível que o SUS seja público, que a saúde seja um direito de todos e uma responsabilidade do Estado, mas que isso não é suficiente. O dilema reformista se renova em outros termos: não é possível garantir esse direito sem a correspondente responsabilidade estatal, mas sem a mobilização persistente e atenta da sociedade não é possível concretizá-lo.

Face ao drama que se anuncia com relação às vacinas, entidades e atores sociais vêm se organizando e fazendo manifestações e chamados à ação. Naomar de Almeida Filho, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, uma das entidades participantes da iniciativa Frente pela Vida, fez um desses chamados: “contra negacionismo, as ciências; contra insensibilidade, a escuta; contra mercantilismo, a solidariedade; contra colaboracionismo, a resistência; contra conformismo, a mobilização; e contra mesmice, a criatividade”. Para avançar nesse sentido, ele indica que temos a crítica intelectual, a militância profissional, a prática política e o ativismo cidadão.

Talvez o maior aprendizado deste dramático ano seja que a defesa do SUS e a defesa da vida exigem essa articulação entre os diversos atores sociais e, principalmente, exigem mobilização popular. Nesse sentido, rememorar as origens do Movimento Sanitário no que se refere à articulação entre profissionais de saúde e organizações comunitárias é sempre uma fonte de inspiração. Sei que é fácil dizer e, no contexto político e sanitário que experienciamos, difícil de concretizar. Ainda assim, levar em consideração o dilema que fundamenta a defesa do SUS ajuda a que essa luta avance na defesa da vida.



(*) Maria Ceci Misoczky é professora do Departamento de Ciências Administrativas da UFRGS

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