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Engenharia biomédica veterinária e o bem-estar animal

Por Ernane Xavier Costa (*) | 18/07/2016 15:15

O bem-estar dos animais, desde a criação até o abate, é um aspecto muito importante na indústria de proteína animal brasileira. Tanto o mercado nacional quanto o internacional já exigem que os animais sejam abatidos de forma humanitária.

O importante é que deste novo paradigma surgiu a necessidade de agregar novas tecnologias na cadeia de produção de proteína animal, principalmente durante o abate. Sendo assim, o novo desafio da pesquisa científica é responder a questão de como reduzir a subjetividade da avaliação do bem-estar animal. Bem-estar durante o abate implica que o animal não sofra durante o processo.

Nas últimas décadas, muita pesquisa científica foi realizada e alguns resultados de laboratórios contribuíram para a criação da resolução CE 1099/2009 (European Council Regulation CE 1099/2009), que regulamenta o bem-estar durante o abate dos animais.

Por exemplo, a tensão e frequência elétrica mínimas que devem ser aplicadas a frangos momentos antes do abate para insensibilizá-los e serem abatidos sem sentir dor. A resolução CE 1099/2oo9 estabelece ainda que a intensidade e a frequência do choque elétrico nas aves deve gerar uma epilepsia generalizada e este estado epiléptico é a garantia da inconsciência.

Assim, as linhas de abates devem ser “calibradas”, ou seja, deve-se avaliar se o equipamento de insensibilização gera um estado epiléptico em uma amostra representativa de frangos.

A epilepsia deve ser monitorada por um equipamento de eletroencefalografia que produz o eletroencefalograma (EEG). O EEG representa o padrão da atividade elétrica gerada pelo cérebro do animal e é coletada através de eletrodos na superfície do crânio. No estado epiléptico, o padrão do EEG é alterado apresentando um padrão específico da epilepsia. Neste contexto o equipamento de EEG é fundamental para avaliar o bem-estar animal.

Com a criação da resolução CE 1099/2009, o debate sobre o bem-estar animal foi acirrado tanto na academia quanto na indústria de proteína animal. A questão é que não se pode deixar de lado o aspecto econômico envolvido na produção e em muitas indústrias que usam o método elétrico de sensibilização de aves a aplicação da resolução resultou em uma queda na qualidade da carne produzida, ou seja, é como se para o animal não sofrer no abate a qualidade de carne diminui e, por conseguinte, o desperdício da mesma aumenta.

Para avaliar esta questão, a Embrapa, suínos e aves, juntamente à ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal) e ao Lafac (Laboratório de Física Aplicada e Computacional da USP-Pirassununga), desenvolveu uma metodologia de avaliação da aplicação da resolução em sistemas de atordoamento elétrico em aves (especificamente frangos de corte). Os estudos foram realizados tanto em laboratório quanto nos abatedouros.

Tais estudos resultaram inclusive em uma proposta de equivalência ou ajuste na resolução para que a realidade brasileira fosse considerada no documento. Isto é importante, pois as exportações de aves para a comunidade europeia devem seguir a resolução CE 1099/2009. No entanto, após apresentar os resultados à autoridade europeia de segurança alimentar, a EFSA (European Food Safety Authority), a proposta de equivalência foi rejeitada.

O estudo realizado pelo Lafac juntamente com a ABPA e Embrapa foi baseado em uma tecnologia de medição de eletroencefalografia (EEG) em aves e constatou-se que a atividade epiléptica requerida pela EFSA ocorria, nos parâmetros elétricos normalmente usados no Brasil, após 15 segundos de aplicação da corrente elétrica; na resolução este efeito deve ocorrer em, no máximo, 4 segundos e portanto a EFSA não aceitou a equivalência proposta.

Esse é um exemplo de como a engenharia biomédica veterinária pode atuar na área de bem-estar animal, fornecendo a tecnologia necessária para criar métodos e equipamentos que permitam monitorar animais durante o abate e avaliar desta forma seu bem-estar.

A ideia de desenvolver um sistema eletrônico inteligente para aprimorar o monitoramento do bem-estar de aves foi bem aceita no mercado e atualmente uma empresa irlandesa, a F&S Consulting, e uma empresa brasileira, a CLE (concebida pelo programa PIPE da Fapesp), desenvolveram uma metodologia baseada no EEG para “calibrar” linhas de abate tendo em foco o bem-estar animal. A metodologia já foi testada no IZSLER (Istituto Zooprofilattico Sperimentale della Lombardia), um órgão italiano equivalente à Embrapa no Brasil.

O IZSLER convidou o Lafac para acompanhar os testes e os resultados foram divulgados para os abatedouros italianos, mostrando a possibilidade de monitorar melhor o bem-estar de aves durante o abate utilizando-se da análise eletroencefalográfica em conjunto com os parâmetros requeridos na resolução CE 1099/2009.

A questão do bem-estar de animais torna-se ainda mais subjetiva quando se trata do abate religioso. O Brasil é um grande exportador de carne de frango para o Oriente Médio e para exportar para os países muçulmanos as regras de abates são rigidamente religiosas. Por exemplo, as aves devem ser abatidas voltadas para Meca e isso só deve ser feito por degola, usando-se uma faca afiada, e cada ave deve ser abatida após uma oração. O problema nesse caso é que a degola não cumpre os requisitos brasileiros de bem-estar animal.

Desta forma, as aves devem ser insensibilizadas antes do corte. Mas caso a autoridade religiosa que fiscaliza o local de abate constatar que o choque elétrico mata as aves, o procedimento é considerado impuro e, portanto, aquela linha será “desclassificada”, tendo que se adequar para continuar exportando para a comunidade muçulmana.

Uma solução proposta pelo Lafac juntamente com a ABPA foi o desenvolvimento de um sistema eletrônico capaz de verificar a vivacidade da ave e com isso garantir à comunidade religiosa “fiscalizar” a vivacidade ou não da mesma.

Este procedimento reduzirá a subjetividade da questão religiosa do processo. Por exemplo, uma maneira de a autoridade religiosa verificar a vivacidade da ave é retirar uma amostra do processo de abate e posicioná-la no solo. Caso a ave não fique de pé com olhos abertos ou com algum movimento claro de que esteja viva, ela é considerada morta. No entanto, a ave pode estar adormecida pelo processo do choque.

Um equipamento que permita à autoridade religiosa constatar que parâmetros como pulso cardíaco e respiração ainda estão presentes nas aves, mesmo estas estando imóveis, reduzirá a subjetividade da análise e garantirá o bem-estar do animal. Percebe-se que tecnologia eletrônica é importante para garantir o respeito religioso com o bem-estar animal e isto é um grande desafio.

Mas existem outros aspectos na produção de proteína animal com bem-estar animal que devem ser considerados e que, portanto, demandam o uso de tecnologia. Antes do abate o animal nasce, é alimentado e, depois de um tempo, transportado para o abatedouro. Ou seja, existe toda uma cadeia para que a proteína efetivamente chegue aos consumidores.

Em toda esta cadeia o bem-estar animal deve igualmente ser considerado. Sendo assim, a forma como o animal é alimentado e a maneira como ele é apanhado e transportado não devem causar nenhum tipo de sofrimento ou desconforto.

Um outro tipo de insensibilização que visa ao bem-estar dos animais durante o abate é o procedimento que usa gás. A mesma resolução que regulamenta o choque elétrico também regulamenta o uso de gás. No Anexo I, Capítulo II, Quadro 3 (Exposição a gás), a resolução descreve o atordoamento em exposição direta ou progressiva de animais conscientes a uma mistura gasosa de CO2.

Este método descreve que, para aves, a duração total da exposição a, pelo menos, 30% de dióxido de carbono deve ser inferior a 3 minutos, o que implica em obter, neste tempo, uma atividade elétrica cerebral suprimida observada no eletroencefalograma (EEG).

Mas, no que se refere ao bem-estar animal, é melhor usar o choque elétrico ou o gás? Esta questão também divide cientistas. O choque elétrico causa uma epilepsia generalizada e rápida, enquanto o gás precisa ser metabolizado.

No entanto, para a qualidade da carne o gás apresenta resultados melhores. A questão é que, em aves, por exemplo, para usar a eletricidade o animal deve ser pendurado de cabeça para baixo até ser insensibilizado, enquanto no uso do gás a ave pode ficar dentro de uma caixa na sua posição normal.

No Brasil a insensibilização elétrica é uma das técnicas de atordoamento mais utilizadas e é, por sua vez, a técnica necessária para levar o animal a um estado de inconsciência no momento do abate, de modo a preservar o bem-estar adequado. Devido às diferentes técnicas nesse tipo de atordoamento, a sua efetividade deve ser comprovada através de avaliação técnica.

A insensibilização é feita com diferentes frequências e formas de onda elétrica nos abatedouros de aves, suínos, peixes e outros pequenos animais. Altas frequências apresentam melhores índices de qualidade de carne e carcaça e baixas frequências apresentam melhores índices de insensibilização.

A insensibilização elétrica, quando aplicada sob controle monitorado dos parâmetros escolhidos, apresenta alta eficácia em levar o animal a um estado de inconsciência de forma instantânea. Estudos de parâmetros que possam reduzir as perdas por defeitos da carne e manter a eficácia do atordoamento podem contribuir para elevar o bem-estar animal nas linhas de abate.

Dessa forma, a engenharia biomédica veterinária tem o desafio de investigar e propor soluções nessa nova área de interação entre veterinária e engenharia elétrica.

(*) Ernane Xavier Costa é engenheiro eletricista pela Poli-USP e coordena o Lafac (Laboratório de Física Aplicada e Computacional) da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos em Pirassununga

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