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Entre o ritual e a competição: o que será dos Jogos Olímpicos de Tóquio?

Por Katia Rubio (*) | 17/04/2020 08:12


O marco do ano esportivo de 2020 seria, sem dúvida, a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio. O Japão, com sua capacidade exemplar de planejar e realizar, prometia superar definitivamente os atropelos e improvisos do Rio 2016. Seria a primeira edição pós-agenda 20+20 cujos caminhos apontam para a superação da mácula produzida pelos sucessivos casos de corrupção que corroem o imaginário de valores e virtudes estruturado sobre uma sólida plataforma de marketing. Seguindo uma tendência de rejuvenescimento, novas modalidades esportivas foram introduzidas no programa, afirmando assim a certeza de que o público jovem acompanharia com interesse e entusiasmo esse momento de virada.

O Movimento Olímpico surgiu para ser uma alternativa para a paz, uma linguagem de entendimento universal por meio do esporte. Aristocrático, tentou seguir à margem das grandes tensões internacionais para se firmar como uma instituição única. Sobreviveu e se fortaleceu ao longo do século passado, chegando na atualidade a ser considerado uma das instituições mais sólidas do planeta. Chegou inclusive a interferir na soberania de alguns países ao ditar as regras e os limites para quem desejasse sediar a competição olímpica.

A tradição inventada do século XX tinha as suas bases fincadas em um rito cuja finalidade era celebrar deuses na Grécia helênica. Os Jogos Olímpicos da Era Moderna, criados por Pierre de Coubertin, tiveram como inspiração esse rico arsenal mítico, fortalecido por um ritual que se tornou uma tradição.

Em pouco mais de um século os Jogos Olímpicos sobreviveram a duas Grandes Guerras Mundiais, à Guerra Fria, a dois boicotes por razões políticas, à superação do amadorismo pelo profissionalismo e à transformação de uma simples competição esportiva em um dos negócios mais rentáveis do mundo. Nem mesmo as tensões geradas pela geopolítica internacional e os diferentes interesses comerciais, que insistem em alterar a ordem natural da coisa olímpica, foram suficientes para abalar a realização dos jogos.

Compreendido como ritual, uma cerimônia que independentemente do cenário político ou social do momento histórico é realizada, os Jogos Olímpicos de 2020 entraram para a história não como os jogos adiados, mas como não realizados. Desfigurado por uma força microscópica, destituída de consciência ou intenção, os jogos se mostram essencialmente humanos, ou melhor, um fenômeno que apenas existe e se realiza pela presença física do humano atleta. Não há força política ou econômica superior à potência da habilidade do protagonista do espetáculo esportivo.

A competição mais celebrada do mundo, mais ansiada pelos atletas e de maior visibilidade do planeta foi adiada, depois de muita vacilação dos dirigentes olímpicos. A quebra do ritual, inédita na história olímpica, afirma a magnitude da pandemia que já deixou milhares de mortos pelo mundo.

O primeiro sinal de que algo errado acontecia no mundo olímpico ocorreu com a cerimônia de acendimento da tocha, inventada em 1936 para os Jogos de Berlim. Realizada, não a portas fechadas, porque ela ocorre no templo sem cobertura da deusa Hera, em Olímpia, na Grécia, mas sem a presença de público, anunciava que o protocolo seguido e perseguido pelos organizadores ao longo das últimas décadas como imutável era, de fato, tão vulnerável como todas as pessoas expostas ao vírus. Os mais pragmáticos disseram que seria apenas uma medida preventiva para impedir a multiplicação da covid-19 que, como espectro, ronda o planeta. Até então, o discurso que prevalecia era “o show deve continuar”. Depois de alguns dias a chama olímpica chegou ao Japão.

Recebida por poucas pessoas protegidas com máscaras e luvas, como determina o protocolo da Organização Mundial da Saúde, a chama foi o anticlímax daquele que seria o megaevento do ano e não a luz que ilumina e anima os Jogos Olímpicos. A demora em admitir a pandemia local parece agora cobrar o seu preço. Sorrateiro e invisível a olho nu, o vírus seguiu o padrão de outros países. E a mesma curva observada nos locais onde não se respeitou o isolamento social passou a produzir efeitos naquela que seria a sede olímpica deste ano, até então anunciando que por lá tudo estava sob controle.

Enquanto isso, no círculo de poder olímpico, uma queda de braços era protagonizada por dirigentes, que colocava em risco uma tradição olímpica: o adiamento ou cancelamento dos Jogos de 2020. Só mesmo as duas Grandes Guerras Mundiais foram capazes de provocar a suspensão dos jogos, muito embora as Olimpíadas tenham sido contadas. O anúncio desse adiamento aponta que o Movimento Olímpico, de fato, não é uma instância isolada da sociedade. Está à mercê da fragilidade dos corpos, das disputas por poder, da corrupção e da finitude.

Enquanto o grupo que defendia a realização dos jogos negava a multiplicação e a letalidade do vírus, apesar dos milhares de mortos na China, Itália, França e Espanha, um outro grupo mostrava a preocupação com a complexidade de um evento que envolve o deslocamento de milhares de pessoas pelo mundo, em um momento em que a recomendação central é o isolamento. Diante disso, uma nova questão surgiu na mesa de negociações: o boicote.

Boicote foi o nome dado ao gesto que envolvia a recusa em participar dos jogos como medida de retaliação a algum movimento político realizado por países como a Alemanha na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, ou a África do Sul, por causa do apartheid, ou a China e Taipei, ou ainda a URSS, por causa da invasão do Afeganistão, afirmando assim a proximidade entre política e esporte. Adiamento ou suspensão é um eufemismo que camufla toda a complexidade que essa pandemia carrega. Fosse apenas um caso de saúde pública o adiamento estaria justificado. O pequeno levante promovido por alguns dirigentes nacionais se mostrou eficiente. Sinal dos tempos.

A negação da gravidade da pandemia e a demora em se posicionar sobre a continuidade dos preparativos ampliaram uma imagem de arrogância que marca os mandatários olímpicos. O momento exige recolhimento e preservação de vidas e o recado do COI era para que os atletas continuassem a treinar a despeito dos riscos que isso poderia causar.

O que se tem agora é uma situação inédita. A competição olímpica será ou não realizada fora de seu calendário quadrienal. Pensando de forma sistêmica, isso representa a desorganização de todo um complexo de ações esportivas. Campeonatos mundiais e até as seletivas para a Copa do Mundo de 2022 pesam nessa desordem. Isso porque cada um desses eventos é fonte de renda para as federações que os promovem.

O cenário atual aponta que o sistema esportivo é organizado como uma estrutura sistêmica e não apenas piramidal. O deslocamento de uma de suas partes promove a desorganização do todo. Nesse sentido, tudo é frágil e interdependente. A compreensão disso poderia levar a um diálogo mais horizontalizado e menos verticalizado, ou seja, haveria de se promover uma comunicação maior e mais respeitosa entre todos os participantes do sistema, sejam eles dirigentes, atletas, empresas.

Os Jogos Olímpicos do passado podiam ser uma celebração aos deuses que se afirma pela presença humana. Mais de 20 séculos depois, essa afirmação permanece atual. Os jogos foram suspensos, apesar de todo o prejuízo material. Com isso quebra-se um rito. O calendário olímpico divino será (ou não) celebrado em um ano ímpar, preservando a competição, os negócios, a satisfação dos atletas e do público. Os Jogos de Tóquio 2020 a serem realizados em 2021 entram para a história como o cumprimento de um calendário ditado pela força do mercado e do capital.

Ganham todos os que vivem a paixão pela competição. Perde-se um ciclo olímpico, ou seja, uma Olimpíada, e ganha-se apenas mais um evento esportivo de caráter global com os cinco anéis. Perde-se o símbolo afirmado pela tradição, esvaziando-se assim da pregnância mítica construída ao longo de séculos.

Se ocorrer em 2021, o que veremos será um arremedo olímpico. Destituído de seu simbolismo, será uma competição respeitosa aos japoneses que prepararam uma festa que tinha tudo para ser impecável. Que isso tudo não seja interpretado como maldição, como cheguei a ler em alguns periódicos. Acostumados a lidar com toda sorte de abalos naturais, tenho certeza de que o Japão ainda mostrará ao mundo mais essa potência: ressignificar um rito desfigurado ao longo dos últimos anos por outros interesses que não a busca pela excelência.

(*) Katia Rubio é professora associada da Faculdade de Educação da USP e membro da Academia Olímpica Brasileira.

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