Escutando as crianças
Segundo a antropóloga e pedagoga Adriana Friedmann, "escutar crianças tem a ver com postura e mudança de atitude daquele que escuta; tem a ver com compreender que cada criança apresenta um repertório próprio, interesses, necessidades e potenciais únicos. Abrir-se para entender, então, que, nós adultos, podemos aprender e nos surpreender com elas. Precisamos aceitá-las e descobri-las no seu âmago, sem a pretensão de corrigir ou necessariamente ensinar-lhes alguma coisa. Todo ser humano quer ser escutado, mas, principalmente, respeitado. Não é diferente com as crianças".
No texto abaixo, vou relatar quatro diálogos que tive com crianças demonstrando que podemos nos sintonizar com elas e identificar ideias próprias. O primeiro relato é de uma conversa com uma menina de dois anos. Fiz para ela aquela indagação clássica: O que você vai ser quando crescer? Ela me respondeu, demonstrando grande segurança: "Adulta!" A menina merecia um título de Mestre em Lógica!
O segundo relato foi com um menino de quatro anos. Ele era franzino e nas disputas físicas com amigos/as e primas, usava a boca como instrumento de defesa e ataque. Era um especialista em mordidas. Assistia com ele a um daqueles desenhos fantasiosos na televisão. Depois de um certo tempo, perguntei-lhe se aquilo que estávamos vendo era real ou simplesmente imaginação. Ele respondeu convicto que era imaginação. Eu, então, perguntei: Será que você não é também imaginação? E ele me respondeu: "Coloque a mão na minha boca para ver se sou imaginação!" Logo, eu me lembrei do pensamento de René Descartes: "Penso, logo existo". Entendi imediatamente o que o menino quis dizer: "Mordo, logo existo!" O terceiro relato foi com um menino de 10 anos, que, apesar da pequena idade, havia frequentado várias escolas. Recentemente, foi estudar em uma escola que está em franca transformação educacional, trocando o paradigma da instrução pelo paradigma da aprendizagem (Comunidades de Aprendizagem), com inovações inspiradas na Escola da Ponte (Porto/Portugal) e comandadas pelo educador José Pacheco, fundador da Escola da Ponte. Nesse novo paradigma, não há provas como no ensino tradicional já superado. Perguntei então ao menino, o que ele achava sobre o fato de não ter prova? Ele, então, me respondeu, com tranquilidade: "Acho uma boa ideia. Imagina, na prova nos colocam em um ambiente em que não temos o direito de ajudar uns aos outros!" Certamente, Paulo Freire gostaria de ter ouvido isso.
A quarta e última narrativa ocorreu em Natal, no Rio Grande do Norte, onde um projeto de educação em ciências foi implantado como braço do Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra, e comandado pelo cientista Miguel Nicolelis. A escola de ciências foi concebida, sem salas de aula e com inúmeros laboratórios de várias áreas de conhecimento. Os estudantes do ensino fundamental de escolas públicas frequentavam essa escola no contra turno. Visitei o local acompanhado pela diretora. Em todas as turmas, provoquei um diálogo com as crianças, perguntando se elas gostavam mais da escola convencional ou da escola de ciências. Todos responderam que gostavam mais da escola de ciências. Eu pedia para justificar. Algumas crianças respondiam, aqui nos recebem com carinho, aqui somos tratados como gente etc. Uma menina, creio que com nove anos disse: "Na outra escola, eu estudo, aqui, aprendo". Paulo Freire sorri outra vez.
Infelizmente, o nosso sistema educacional, por acreditar que o pensar das crianças não é consistente, preferem ensinar tudo, como se elas não tivessem ao longo de suas vidas, a partir de observações e escuta, uma visão do mundo. Penso que devemos exercitar o pensamento crítico desde a primeira infância. O pensamento crítico é a capacidade que uma pessoa tem de pensar por si mesma, ou seja, obter dados do meio que está inserido e transformar as informações em opiniões, em ideias próprias e também exercitar a sua criatividade em instrumentos de progresso do processo civilizatório.
É pertinente lembrar o pensamento de Maria Montessori: "Liberte o potencial da criança e você transformará o mundo" e também de Marilena Chauí: "Quando uma criança brinca, joga e finge, ela está criando um outro mundo, muito mais rico, mais belo e muito mais repleto de possibilidades e invenções do que de fato vive".
(*) Isaac Roitman é professor emérito da Universidade de Brasília, pesquisador emérito do CNPq, membro da Academia Brasileira de Ciências e do Movimento O Brasil e o Mundo Que Queremos.