Eu exibiria “Ainda Estou Aqui” para meus alunos?
As pessoas são estranhas. E não controlam para onde o pensamento vai ao serem provocadas com obras de arte. Tanta coisa para pensar assistindo ao filme Ainda Estou Aqui – de que gostei – e não é que passei a maior parte do tempo do filme com essa pergunta: “Eu exibiria Ainda Estou Aqui para meus alunos, no cinedebate?”.
Um pouco de contexto: sou professora do curso de Gestão de Políticas Públicas e no Ciclo Básico da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Desde 2019, coordeno um projeto de cinedebate por lá. A ideia inicial era discutir, por meio de filmes, temas relacionados aos direitos humanos. No início de 2024, por exemplo, em memória dos 60 anos do golpe militar, exibi O que é isso, companheiro? (1997, Bruno Barreto). Tivemos uma boa conversa a partir do filme, abordando o contexto da ditadura, as diferentes formas de ação política e o papel dos direitos humanos em ambos os contextos.
Portanto, a ideia de exibir um filme que trate da ditadura brasileira não é algo distante. Refleti também sobre as várias discussões que já tive em sala de aula com estudantes da EACH, especialmente nas ocasiões em que precisei argumentar e defender que o Estado de Direito e a Democracia estabelecidos pela Constituição Brasileira de 1988 são qualitativamente e significativamente melhores do que viver sob uma ditadura – mais especificamente, a ditadura brasileira iniciada com o golpe de 1964.
A maioria de meus alunos, ao falar sobre a ditadura, não menciona o crescimento econômico nem defende seu viés conservador/repressivo. Pelo contrário, eles são, em geral, bastante progressistas. Apenas observam que, no Brasil, em São Paulo, nas periferias em que vivem, frequentam ou conhecem – e onde está o campus da USP Leste – a ditadura e o Estado Democrático de Direito podem não parecer assim tão diferentes. Pelo menos essa é a percepção deles em relação à violência policial, por exemplo. “Essas formas de organização do poder são muito distintas para pessoas com trajetórias como a sua, Ester, mas para quem vive nas periferias – onde o Estado de Direito é fraco – as diferenças não são tão evidentes”, um deles poderia argumentar. Por isso, fazer elogios ao Estado Democrático de Direito e críticas ferrenhas à ditadura pode soar um tanto… cínico. Como se estivéssemos tentando ver e amplificar diferenças onde elas não existem. Ou talvez existam: na ditadura, a violência estatal atingia as classes médias e altas, bem como a intelectualidade. Agora, atinge os pobres e os periféricos, e por isso parece que ela simplesmente não existe. Essa, ao menos, é a percepção de muitos alunos com quem já conversei.
Assisti ao filme na semana em que foram divulgados os números de mortes causadas pela Polícia Militar de São Paulo em 2024. Houve um aumento significativo em relação a 2023 e 2022, com 577 mortes por policiais em serviço só neste ano. E só em São Paulo. Durante os 20 anos da ditadura, os relatórios documentam um total de 475 mortes. Embora a soma real possa ser muito maior diante dos problemas de informação do período ditatorial, a escala é essa. Importante destacar que, além das mortes decorrentes da repressão política durante o regime militar, as forças policiais da época não eram tão letais no enfrentamento de crimes comuns, ao contrário do que acontece hoje.
Então, como manter minha defesa do Estado Democrático de Direito estabelecido pela Constituição Brasileira de 1988 diante de meus alunos? Sim, continuo a defendê-lo. A construção dessa argumentação é longa e não se limita à violência policial.
Como ponto de partida, contextualizo a violência policial e o hiperencarceramento na decisão de aderir à guerra às drogas, que faz parte de um contexto internacional mais amplo. Uso o texto de Mauricio Fiore para embasar essa discussão.
Também não minimizo as arbitrariedades e violências, que precisam ser denunciadas e revertidas, mas… destaco que organizações como a Coalizão Negra por Direitos, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Núcleo de Estudos sobre a Violência da USP, a Ponte Jornalismo, apenas para citar algumas, denunciam constantemente os abusos policiais. Alguns policiais são afastados, investigados, processados e, embora os processos nem sempre sejam exemplares – vários deles são absolvidos por júris populares –, alguns são punidos pelas instituições de controle do próprio Estado.
No Estado Democrático de Direito, posso escrever este texto denunciando a calamidade do sistema carcerário e das políticas de segurança pública para os direitos humanos sem temer ser presa ou morta. E não sou a única. São todas as entidades mencionadas acima. São todos os que denunciam a morte de Marielle Franco e exigem a condenação dos responsáveis. Não tenho medo de morrer ou de ser presa por denunciar a violência e as violações de direitos humanos do Estado brasileiro em 2024. E isso, de certa forma, é um elogio ao Estado brasileiro. Pode parecer contraditório, mas não é.
Além disso, ao analisarmos o número de mortes de policiais paulistas, é importante lembrar que o ex-governador João Dória implementou uma política de câmeras nas fardas policiais. Essa política diminuiu a letalidade da polícia paulista. O atual governador, Tarcísio de Freitas, foi eleito com a promessa de descontinuar essa política. De alguma forma, o retrocesso desses dois últimos anos foi uma escolha da população de São Paulo. Não é um consolo, mas é uma informação relevante. Se a polícia de 2024 mata mais do que a de 2022, de algum modo os paulistas escolheram esse caminho por meio do voto. E isso também é uma diferença em relação à ditadura brasileira, quando não havia eleições diretas.
Voltemos ao filme e à minha pergunta inicial, porém. Passei o filme inteiro pensando que não seria bom passar este filme para meus alunos da EACH. O filme parece só reforçar a ideia de que nos horrorizamos e sensibilizamos com a violência e a arbitrariedade policial porque aquelas pessoas fazem parte de uma elite econômica. Diriam que cenas semelhantes àquelas acontecem com muita frequência no litoral paulista, na periferia paulistana. E parecemos não ter dúvida em dizer que vivemos em um Estado Democrático de Direito, que estamos muito melhores do que em 1970.
Acho que o filme poderia ser um bom ponto de partida para a conversa. Mas, ao longo do debate, o próprio filme não ajudaria muito com elementos para o desenrolar da discussão. A trajetória de Rubens Paiva talvez ajudasse. Não o “bom pai” retratado, mas o Rubens Paiva político, deputado cassado, que fez um discurso pelo rádio na madrugada do golpe, que precisou se exilar. O Rubens Paiva que quis voltar ao Brasil mesmo sabendo correr risco, que se afasta da vida política para trabalhar como engenheiro. O Rubens Paiva que, embora tentasse se manter distante do cotidiano da realidade política, seguiu ajudando os resistentes e exilados. A sua morte nas mãos do Estado é simbólica dos mecanismos de repressão estatal daquele momento histórico.
Isso não significa fazer nenhum juízo de valor nem comparação com as repressões das forças policiais hoje. Elas eram inadmissíveis em 1970 e seguem inadmissíveis hoje, em 2024. E, talvez, em termos quantitativos, seja possível constatar que os índices de arbitrariedade e violência policial tenham piorado. Infelizmente, o Estado Democrático de Direito não promete necessariamente um resultado social de permanente avanço na garantia de todos os direitos humanos. A história social admite avanços e retrocessos relacionados aos contextos sociais e políticos que essas sociedades vivenciam.
Gostaria de terminar este texto afirmando que, do meu ponto de vista, o estabelecimento do Estado Democrático de Direito em 1988, com todas as suas imperfeições de realização no cotidiano brasileiro, é um ganho em si. Isso porque ele oferece um enquadramento diferente para o enfrentamento das questões que atravessam a realidade brasileira. Em relação à violência policial, para ficar com o exemplo do filme e do texto, posso identificar as seguintes características, que não estavam presentes na ditadura:
• os mecanismos e esforços de controle da ação policial – tanto os efetivos como o compromisso discursivo e normativo de que a ação estatal deve ser controlada, de que não podem existir abusos de poder ou violência desmedida, de que quando houver, as ações serão responsabilizadas;
• a liberdade de expressão, de imprensa e organização política, inclusive para denunciar abusos cometidos;
• a disputa eleitoral em torno da segurança pública.
É apenas no Estado Democrático de Direito que é feita a promessa – nem sempre cumprida, mas sempre existente como promessa – de que a ação estatal é limitada pelo princípio da legalidade, de que não pode haver violência policial e ação arbitrária. É a partir dessa promessa que podemos reivindicar, lutar também por meio das instituições, para que a ação estatal seja efetivamente restrita aos limites estabelecidos em lei. É melhor ter uma promessa a partir da qual podemos denunciar dissonância frente à realidade do que não termos sequer a promessa.
Ao fim e ao cabo, Ainda Estou Aqui parece ser um bom filme para ser exibido no cinedebate da EACH, certo?
(*) Ester Gammardella Rizzi, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.
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