Evolução da medicina abre novas perspectivas de tratamento para doenças raras
As doenças raras, aquelas que afetam até 65 pessoas a cada 100 mil nascimentos, são também muitas vezes doenças órfãs, um termo utilizado para classificar enfermidades que ainda não têm tratamento disponível. Isso acontece por diversos motivos, mas o principal fator é a própria raridade das doenças, pois o pequeno número de pacientes em cada doença acaba dificultando a pesquisa e o desenvolvimento de novos medicamentos.
Porém, nos últimos anos, a evolução da medicina tem trazido novas esperanças para os pacientes, como ilustram os resultados divulgados recentemente de uma pesquisa clínica para um inovador tratamento para a Mucopolissacaridose tipo II (MPS II), da qual participo diretamente.
A MPS II é uma doença genética rara na qual há a deficiência de uma enzima responsável pela degradação de determinadas substâncias no corpo. Como estas substâncias não são degradadas, elas começam a se acumular nas células do organismo, podendo causar diversos efeitos negativos, como dificuldades de locomoção, problemas respiratórios e circulatórios, alterações visuais e auditivas, além de alterações neurológicas que na maioria das vezes comprometem o desempenho cognitivo do indivíduo.
A MPS II é tratada com a reposição da enzima deficiente, e assim os indivíduos passam a degradar as moléculas acumuladas. No entanto, os efeitos neurológicos desta doença, como ocorrem em muitas outras, não são tratáveis com as enzimas administradas por via intravenosa, uma vez que essas não conseguem chegar até o cérebro.
Isso ocorre porque o sistema nervoso central tem em seus vasos sanguíneos uma estrutura especial chamada barreira hematoencefálica, ou barreira sangue-cérebro, formada por um conjunto de células que atuam como um filtro altamente seletivo. Esse filtro protege o sistema nervoso central contra moléculas tóxicas ou microrganismos existentes no sangue, defesa que acaba impedindo também que um medicamento administrado por via oral ou injetado no sangue chegue até o cérebro, mesmo quando ele é necessário para algum tipo de tratamento.
Até pouco tempo atrás, a entrega de medicamentos diretamente no sistema nervoso central só era possível através de injeções diretas no cérebro e na medula espinhal – o que torna praticamente inviável qualquer tipo de tratamento a longo prazo. Outras estratégias, como o uso de compostos como o manitol, utilizado para abrir a barreira hematoencefálica, podem ser úteis em determinados casos, mas causam efeitos extremamente indesejados, como exposição dos neurônios a danos e prejuízo do funcionamento dos rins. No entanto, o avanço da medicina nos últimos anos está trazendo respostas para este desafio e novas possibilidades de tratamento.
Está aprovado no Japão desde 2021 e em análise pela ANVISA para aprovação no Brasil, um novo composto que pode revolucionar esta área da medicina. A nova tecnologia permite que uma medicação administrada no sangue seja capaz de atravessar a barreira sangue-cérebro e fazer com que moléculas levadas por via intravenosa cheguem até o sistema nervoso central. O primeiro medicamento a utilizar esta tecnologia é o pabinafuspe alfa, que repõe no sistema nervoso e no resto do corpo a enzima deficiente nos pacientes com MPS II, foco da primeira pesquisa clínica realizada com este medicamento.
Assim, a nova tecnologia já disponível no Japão, e possivelmente também no Brasil num futuro próximo, significa uma verdadeira quebra de paradigma no tratamento da MPS II, pois consegue tratar tanto os sintomas físicos quanto os sintomas neurológicos da doença.
Na verdade, o Brasil está participando ativamente desta revolução da medicina. Os resultados da fase II da pesquisa clínica sobre a utilização do pabinafuspe alfa para o tratamento de pacientes com MPS II – cuja fase brasileira tive o prazer de conduzir no Hospital de Clínicas de Porto Alegre – foram bastante animadores.
O estudo revelou que o tratamento com pabinafuspe alfa pode ser benéfico para manter o desenvolvimento neurocognitivo em pacientes com MPS II com a forma grave da doença, além de promover a estabilização neurocognitiva em pacientes com a forma atenuada, podendo ser utilizado para o tratamento de ambas as formas, tanto das manifestações neurológicas quanto das manifestações fora do sistema nervoso central.
Os pacientes e seus cuidadores relataram aos pesquisadores uma melhora considerável nas atividades dos pacientes, das quais a caminhada foi a mais comum (78%), seguida de "agarrar objetos sem dismetria ou tremor" (55%), interação social (55%) e qualidade do sono (33%).
As respostas abertas dos pais de pacientes indicaram também que houve uma melhora significativa nas emoções de seus filhos após o tratamento com pabinafuspe alfa, com relatos de observações como "sorrisos", "contato visual" e "abraços".
Além dos resultados positivos em pacientes com MPS II observados na pesquisa, um novo tratamento baseado na mesma plataforma já está em estudo para a utilização com pacientes de MPS Tipo I e também abre caminho para uma grande evolução dos tratamentos de doenças neurológicas em geral, uma vez que a nova tecnologia também deve ser capaz, no futuro, de transportar com segurança muitas outras moléculas através da barreira sangue-cérebro.
Esta é uma conquista muito importante, e esperamos que em breve esta tecnologia seja aprovada para o uso também no Brasil, uma vez que os pacientes com este tipo de doença, que afeta de modo progressivo o sistema nervoso central, não podem esperar, em função das sequelas irreversíveis que podem se instalar à medida que o tempo passa.
(*) Roberto Giugliani é médico geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.