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Importância dos povos para a identidade brasileira

Por Gersem Baniwa (*) | 10/02/2025 13:30

Os povos indígenas são parte fundamental da identidade nacional brasileira, pois são a base da cultura, da sociedade e do território do país. Contribuíram para a formação da identidade nacional com seus saberes, culturas, tradições, medicinas, culinárias, línguas, cosmovisões e modos de vida. O indígena foi considerado em vários momentos da história do Brasil como símbolo de coragem, dignidade, heroísmo e patriotismo.

Com a Independência do Brasil em 1822, as elites iniciaram a construção das bases de um Estado Nacional, marcado pelo nacionalismo e pela afirmação da soberania política nacional. O indígena, filho originário da terra, tornou-se legítimo representante simbólico da nacionalidade. Eleito como símbolo da nacionalidade, expressão do patriotismo, o indígena foi representado na Literatura, nas Artes Plásticas, nos discursos políticos e de intelectuais. Cantados e exaltados, os indígenas tiveram suas línguas estudadas até pelo Imperador D. Pedro II. O próprio manto do Imperador era um trabalho indígena, confeccionado com penas de papos de tucanos.

Hoje é consenso que o povo brasileiro é formado pela junção de três raças: a indígena, a branca e a negra. Mas não foi somente no aspecto biológico que os índios contribuíram para a formação do povo brasileiro, mas principalmente do ponto de vista cultural, começando com a própria língua portuguesa, que acabou incorporando várias palavras, conceitos e expressões de línguas indígenas. Há centenas de nomes de lugares (Iguaçu, Itaquaquecetuba, Paranapanema), de cidades (Manaus, Curitiba, Cuiabá), de pessoas (Ubiratan, Tupinambá, Raoni), de ruas e até de empresas (Aviação Xavante, Empresa Xingu). Nomes como milho, abacaxi, caju, açaí, tacacá, moqueca, pamonha são apenas alguns exemplos da riqueza vocabular que os povos indígenas contribuíram para a língua falada no Brasil. Através de sua forte ligação com a floresta, descobriram nela uma variedade de alimentos, como a mandioca (e suas variações como a farinha, o pirão, a tapioca, o beiju e o mingau), utilizados na alimentação. Esse conhecimento é fruto de milhares de anos de conhecimento da floresta. Desenvolveram o cultivo de centenas de espécies como o milho, a batata-doce, o cará, o feijão, o tomate, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná e outros.

A música popular brasileira tem influências da cultura indígena, como os instrumentos de sopro e percussão, e muitas expressões como “awé”.  As técnicas de tecelagem, cerâmica, pintura e entalhe em madeira dos povos indígenas são admiradas e muitas vezes incorporadas à produção artística brasileira. Além disso, padrões e símbolos indígenas são frequentemente usados em design de moda, decoração e arte contemporânea.

Alguns estudiosos estimam que os índios do Brasil já chegaram a dominar uma cifra de mais de 200.000 espécies de plantas medicinais. A medicina tradicional possui um valor incalculável com potenciais para novas descobertas sobre os mistérios da natureza e da vida e que podem representar soluções para muitos males que hoje afligem a humanidade e os homens da ciência. Foram os indígenas da América que dominaram, ao longo de séculos ou milênios, conhecimentos sobre os produtos anestésicos, que hoje são fundamentais para os processos cirúrgicos praticados pela medicina moderna. Os Baniwa dominam essa técnica há muito tempo, sendo o principal instrumento de caça e de guerra. Os Ashaninka e outros povos indígenas do Acre são exímios conhecedores de plantas alucinógenas, como a ayawaska.

Existem também as riquezas estratégicas que se encontram nos territórios indígenas, dos quais eles são guardiões e defensores. A principal delas é a megabiodiversidade existente em suas terras, que representam 13% do território brasileiro. Fotos de satélite mostram que as terras indígenas são ilhas de florestas verdes rodeadas por pastos e cultivos de monoculturas. Esta não é apenas uma riqueza dos índios, mas de todos os brasileiros, na medida em que são florestas que contribuem para amenizar os desequilíbrios ambientais do planeta nos tempos atuais.

Os povos indígenas brasileiros constituem ainda uma riqueza cultural invejável para muitos países e continentes do mundo. São 305 povos étnicos falando 275 línguas, bem mais que as 234 etnias existentes em todo o continente europeu. São poucos os países que possuem tamanha diversidade sociocultural e étnica. Os povos indígenas, herdeiros de civilizações milenares, ajudaram e continuam ajudando a escrever e a construir a história do Brasil e do planeta com seus modos de pensar, falar e viver. O Brasil, terra generosa, hospitaleira, biodiversa sempre foi o berço de civilizações indígenas. Por isso são seus guardiões, cuidadores e defensores. É um lugar sagrado de ancestralidade e espiritualidade, terra do Bem Viver, da “Hekwape Ienepe, da “Yvy marã e’y” da Pachamama, da Aby-Yala.

Os povos indígenas são sociedades autóctones das Américas que desenvolveram e continuam desenvolvendo civilizações complexas, autônomas e altamente sustentáveis, cujas histórias não acabaram, porque continuam vivas e cada vez mais enraizadas na sociedade de hoje. As culturas indígenas expressam os grandes valores universais, às suas maneiras. Nas solenidades das festas e dos rituais, no refinamento e beleza das vestimentas, na pintura corporal, na educação comunitária dos filhos, na concepção sagrada do território, da natureza e do cosmos, elas manifestam a consciência ancestral, histórica, moral, estética, ética, religiosa e social. A diversidade de visões de mundo e dos modos de organização da vida, são transmitidos de pais para filhos e de geração para geração. As experiências empíricas e teórico-reflexivas do corpo e do espírito são as forças que movem o caminho milenar dos povos ameríndios. A territorialidade indígena atua como um estado de espírito da existência e os ritos e as memórias históricas como referências de identidade e da consciência humana e sociocósmica.

Durante os séculos de contato com os povos europeus, os povos indígenas não foram apenas vítimas da colonização. Eles também colonizaram os colonizadores com suas culturas, valores, saberes e fazeres. Protagonizaram intercasamentos com não indígenas. Inspiraram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade (comunalidade para os indígenas) da Revolução Francesa e várias lideranças indígenas foram à Europa nos primeiros séculos da conquista a convite de reis para participarem de grandes eventos celebrativos dos seus reinos. A cultura indígena é uma parte integral da identidade brasileira, e reconhecer e valorizar essa herança é essencial para a construção de uma sociedade mais justa, sustentável, diversa e democrática.

(*) Gersem Baniwa é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e liderança de organizações indígenas locais e regionais.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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