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Inteligência artificial e direitos autorais: um caminho por construir

Por Luiz Gonzaga Silva Adolfo (*) | 16/12/2023 08:30

Nos últimos tempos, tem sido bastante aguçada a discussão sobre o uso da inteligência artificial nos mais diversos segmentos. E no campo dos direitos autorais não seria diferente.

Afora certo determinismo tecnológico que se vê aqui e acolá (a tecnologia como “última tábua” de salvação), o tema merece a análise científica e ponderada que todo cientista (sem “parte” ou vinculado à ciência e à verdade) deve fazer. Digo isso porque muitos me indagam se sou contra ou a favor da inteligência artificial. Como se isso fosse relevante científica e juridicamente. O que deve sempre ser analisado é o espaço das políticas públicas e o caráter regulatório do direito.

Tudo faz lembrar do mestre de todos os autoralistas brasileiros, o professor José de Oliveira de Ascensão. Já no início da década de dois mil, o pesquisador lusitano falava da sua preocupação a respeito de “um Direito do Autor sem autor”.

Curiosamente, boa parte das discussões travadas em torno da temática de direitos autorais e inteligência artificial se dão no campo estrito dos direitos patrimoniais de autor, ficando, mais uma vez, os direitos morais (como o direito à autoria e o de ser mencionado como autor) como o “filho pobre” e esquecido dos direitos autorais.

Na sociedade da informação (Castells) e com a inteligência artificial esta situação se torna mais sensível. Poderemos ter então direitos autorais “sem autor”? É preciso prudência, pois a discussão está apenas começando, e o caminho é longo.

Autores, a exemplo do professor Christophe Geiger, destacam o caráter antropocêntrico dos direitos autorais. De outro modo, vale enfatizar que a autoria é restrita aos seres humanos. Isso é assim há muito tempo na organização jurídica dos direitos autorais, seja no plano internacional ou na tessitura autoralista interna corporis. A pessoa jurídica pode ser titular de direitos patrimoniais de autor. Agora, a autoria (ao menos nos direitos autorais clássicos) é de pessoas humanas.

Todos conhecem e têm lido e ouvido nos últimos meses sobre os vários casos de criações de “obras” pela inteligência artificial, desde o tão discutido comercial com Elis Regina até a questão da greve dos atores de Hollywood, terminada recentemente. Ao mesmo tempo, há quem veja aí uma oportunidade.

A União Europeia editou, em 20 de outubro de 2020, uma resolução por intermédio de seu Parlamento, definindo direitos intelectuais ligados ao desenvolvimento de tecnologias digitais, buscando aproveitar as oportunidades e o potencial oferecidos pela inteligência artificial.

Entre os requisitos traçados pela União Europeia para a regulamentação da inteligência artificial, destacam-se: intervenção e supervisão humana; robustez técnica e segurança; privacidade e gerenciamento de dados; transparência; diversidade, não discriminação e equidade; bem-estar social e ambiental; prestação de contas.

Como podemos notar, são valores sociais, tecnológicos, éticos, jurídicos e econômicos muito significativos. Simultaneamente, discute-se em todos os quadrantes sobre os riscos da inteligência artificial, tanto no campo ético quanto no da responsabilidade civil.

Como bem enfatiza o professor Marcos Wachowicz, há quatro principais possibilidades vislumbradas em um primeiro momento para a proteção autoral ou não das criações resultantes da inteligência artificial: as obras criadas pela inteligência artificial estariam automaticamente em domínio público; a titularidade das criações geradas por inteligência artificial seria da empresa que desenvolveu o aplicativo ou a tecnologia; a titularidade seria do usuário; há necessidade de um novo direito conexo aos direitos autorais para sustentar o direito à empresa que domina tal tecnologia.

Paralelamente, e como parece ter sido desde o início da história da criatividade humana, os autores e titulares de direitos conexos estão literalmente atordoados em meio a esta nova realidade. Ela é, ao mesmo tempo, oportunidade e risco.

Não restam dúvidas de que o uso cada vez mais acentuado da inteligência artificial na criação de obras “não autorais” suscita a colisão de direitos fundamentais diante da proteção, nesta dimensão, dos direitos autorais.

A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO/OMPI) tem realizado debates sobre inteligência artificial e propriedade intelectual em sua linha de competência e de atuação. Eles podem ser visualizados no site da instituição.

No entanto, é preciso registrar que boa parcela dos autoralistas mundo afora questiona com argumentos bastante sólidos e convincentes a possibilidade de proteção de obras sem autor (ou oriundas de tecnologia embasada em outros autores, sem mencioná-los), como Guillermo Palao Moreno (Universidade de Valência), Matt Blaszczyk (Universidade de Georgetown), Daniel Gervais (Universidade de Vanderbilt), Christophe Geiger e Vincenzo Iaia (Universidade Luiss Guido Carli /Roma). Apenas para mencionar alguns, já que o debate é incipiente e está aberto em um caminho a construir.

Teremos mesmo um dia um direito de autor sem autor?

(*) Luiz Gonzaga Silva Adolfo é advogado, doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor dos Cursos de Direito da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra).

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