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Jogo do bicho: a origem das dinastias do crime no Rio

Bruno Paes Manso (*) | 11/11/2023 07:20

No primeiro episódio da série Vale o Escrito – a guerra do jogo do bicho, da Globoplay, João Luís, um anotador de apostas, explica como enxerga sua atividade: “Aqui eu sou um vendedor de ilusão. Eles me chamam de contraventor, mas eu prefiro me qualificar dessa forma”.

Nos capítulos seguintes, prepare-se para suspender os julgamentos morais e ouvir uma sequência de depoimentos de pessoas que fazem parte dessa indústria bilionária e fora da lei. Um documento raro e histórico, que nos ajuda a entender melhor a complexa trama criminal do Rio de Janeiro na atualidade e a pensar sobre como chegamos até aqui.

O argumento de João Luís cala fundo na opinião pública. Afinal, vender ilusão é bem melhor do que traficar drogas, outro negócio bilionário do mercado do crime. O primeiro oferece aos que apostam a chance de enriquecer em um golpe de sorte, a partir de sinais vindos durante o sonho.

Beneficia o “sistema” porque mantém acesa a esperança de driblar seus obstáculos, criando um otimismo que acaba fragilizando a potência explosiva da insatisfação popular e das lutas coletivas por reformas. Já o comércio de drogas vai em sentido oposto. O consumo excessivo simboliza a desordem e pode bugar o “sistema” porque fragiliza os controles individuais, pode levar ao vício, à loucura, à irracionalidade e à fuga da realidade.

Enquanto, no senso comum, o bicho segue vinculado à tradição e à preservação da ordem, merecendo complacência das autoridades e das polícias, as drogas são facilmente ligadas à imprevisibilidade e ao medo da violência, abastecendo uma guerra infindável no Brasil e no mundo, que no Rio de Janeiro ganha a forma de operações policiais sangrentas nos morros e favelas. Por mais danosas e trágicas que sejam as consequências dessas ações, acabam sendo toleradas e até incentivadas pela população.

No decorrer da série, dirigida por Felipe Awi, Ricardo Calil e Gian Carlo Bellotti, vemos que os bicheiros podem ser tão ou mais violentos e perigosos do que os próprios traficantes. Também enxergamos a origem da força sedutora dessas lideranças, com sua capacidade de se infiltrar nas entranhas das instituições republicanas.

Os contraventores, que organizaram o bicho ainda nos anos de 1970, dividindo os territórios entre suas famílias, eram malandros e tinham jogo de cintura. Sabiam que dinheiro não era o suficiente para influenciar a política e comprar as autoridades. Era preciso conquistar a alma do povo e da elite em todas as dimensões. Foi quando deram a cartada de mestre, passando a financiar os desfiles das escolas de samba, a grande fábrica nacional de sonhos e ilusões.

Como escreve Roberto Da Matta no livro Carnavais, Malandros e Heróis, no Carnaval o tempo fica suspenso e abre-se espaço para a subversão da hierarquia na sociedade injusta e desigual. Durante uma hora, o pobre se vinga na avenida e mostra que sabe ser mais feliz do que o rico, em um espetáculo glamuroso transmitido para o mundo todo.

Antes da apoteose, ao longo do ano, o trabalho na indústria do samba fortalece laços comunitários, aumenta a autoestima nos bairros e celebra o corpo e a cultura popular. É uma forma sofisticada e criativa de desfrutar a vida, mesmo em uma sociedade injusta, mas que não transforma nem revoluciona as bases do sistema, apenas o torna suportável.

Com as escolas de samba e com o dinheiro de seus patronos, esse projeto popular e conservador se ampliou em riqueza, brilho e tamanho. Produziu a síntese da alma do brasileiro tipo-exportação: pessoas que sabem ser felizes, sensuais, divertidas, belas, poderosas, mesmo na adversidade.

Os bicheiros, que deram condições materiais para a construção desse imaginário repleto de cedros, coroas, bandeiras, hinos, criaram suas dinastias territoriais e se tornaram parte da elite cultural e econômica do Rio, financiando seu poder sob as vistas grossas dos políticos, das autoridades, dos artistas e dos meios de comunicação. Eles ajudavam a preservar o status quo moldando a imagem nacional da alegria forjada nos desfiles.

Dessa forma, o Rio de Janeiro, a cidade mais aristocrática das Américas, avançou para a modernidade mantendo no poder seus reis malandros. Com o passar do tempo, essa estrutura se esfacelou. Ao longo da série, compreendemos as minúcias do processo autodestrutivo a partir de depoimentos históricos como os do capitão Aílton Guimarães (patrono de Vila Isabel), das gêmeas Shana e Tamara Garcia, netas do finado Miro e filhas do finado Maninho (ex-patronos do Salgueiro), e de Bernardo Bello, ex-marido de Shana, em guerra aberta com Rogério de Andrade, sobrinho do finado Castor de Andrade (ex-patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel). Eles desfilam suas personalidades carismáticas, narrando suas vidas recheadas de reviravoltas, ostentação, tragédias, conflitos e traições shakespearianas.

Diante da fragilização dessas dinastias, podemos compreender melhor a configuração da guerra de tronos atual e a ação das novas dinastias milicianas. Alguns desses grupos estão vitaminados pelas parcerias com traficantes e seus fuzis, também donos de morro, que durante muito tempo foram apontados como a principal ameaça social do Rio. Com a formação das milícias, o negócio criminal que mais se expandiu na última década, dominando mais da metade dos territórios fluminenses, a geografia e o poder no crime começaram a se transformar.

Na semana passada, em artigo para o site da Piauí, escrevi sobre o quadro atual da criminalidade fluminense. Bicheiros, traficantes e milicianos promovem novas alianças e rivalidades em busca de criar outra ordem no crime. A ordem republicana e democrática parece sem força para reagir, tamanha a influência dos representantes do crime em suas instituições.

A ação dos traficantes evangélicos, que assumiram um discurso religioso para tentar legitimar sua autoridade em lugares como Parada de Lucas, Vigário Geral e Cidade Alta, deve ser compreendida a partir deste contexto de mudanças do poder no crime. Peixão, o traficante que se formou pastor e acredita ter recebido uma mensagem de Deus durante um sonho, liderou a formação do Complexo de Israel com um discurso messiânico. Ter uma nova causa mobilizadora e carismática, estabelecer um sentido para a luta do bem contra o mal, é mais um artifício, juntamente com os fuzis, para criar unidade entre chefes e subordinados nessa guerra dos tronos. Descrevi esse processo em mais detalhes no livro A Fé e o Fuzil – crime e religião no Brasil do século XXI (Editora Todavia).

A dinâmica do crime, mais do que uma mera discussão sobre polícia e segurança pública, tornou-se uma questão central para o debate político brasileiro. Investigar os discursos por trás das ações violentas ajuda a entender melhor as motivações que levam a transformações e conflitos na sociedade. Em São Paulo, por exemplo, a situação do crime é bem diferente do Rio, assim como a história da violência no Estado.

O discurso que deu unidade ao crime e que promoveu a força e a autoridade dos chefes do Primeiro Comando da Capital (PCC) foi inspirado em um discurso de luta de classes, em uma sociedade que cresceu a partir do trabalho nas indústrias e da divisão urbana entre centro e periferia. Inspirado nos discursos dos movimentos sociais e dos sindicatos, o PCC promoveu a “consciência no crime” mobilizando a união dos ladrões contra o sistema cruel e violento.

Conseguiu dessa forma estabelecer regras mais profissionais e estimular o empreendedorismo criminal, promovendo saltos no faturamento dos participantes da rede e acesso ao mercado global. De forma malandra, lavando dinheiro e investindo na política e na economia formal, soube penetrar no sistema e atualmente tira proveito de sua nova posição social, infiltrado nas instituições.

Tanto no Rio como em São Paulo, para não falar de outros Estados brasileiros, como os da Amazônia Legal, ganhar dinheiro se tornou a meta a ser alcançada, o grande propósito de vida, independente dos prejuízos a terceiros e aos interesses coletivos.

(*) Bruno Paes Manso é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

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