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Lavagem de dinheiro e mescla de bens

Por André Callegari (*) | 25/10/2023 13:30

Em face de inúmeras decisões judiciais que determinam o bloqueio de contas bancárias quando o seu titular se encontra investigado pela prática do delito de lavagem de dinheiro, é necessário que se revisite o tema tormentoso da mescla de valores lícitos e ilícitos.

E nesse ponto, entendemos que a determinação de bloqueio de valores não pode recair sobre a totalidade dos bens do investigado. Isso porque tal decisão judicial pode levar ao estrangulamento financeiro das pessoas física e jurídica, uma vez que inviabilizaria toda a sua movimentação financeira em momento em que ainda que não se tem prova concreta e indubitável de que todos os valores são provenientes de um delito.

A questão da mescla de valores de origem delitiva com valores lícitos ainda encontra dificuldade de solução na doutrina e na jurisprudência, pois, como referido, normalmente há apenas o bloqueio total dos bens, sem uma solução intermédia. Fato mais grave ocorre no final do processo em que há o perdimento da totalidade dos valores confiscados, sem a verificação prévia do que já era patrimônio lícito da empresa antes da data dos fatos investigados, por exemplo, ou do que foi adquirido licitamente. Dito de outra forma, não há, nem na doutrina nem na jurisprudência, parâmetro para uma distinção entre patrimônio lícito e ilícito do condenado pela comissão do delito de lavagem, fato que acarreta na determinação da perda dos bens em sua totalidade.

Essa questão se verifica em função da ausência de delimitação do que seria contaminado pelo delito de lavagem de dinheiro, isto é, se haveria uma contaminação total com a mescla de valores lícitos e ilícitos, ou, somente parcial, mantendo-se livre de qualquer restrição o patrimônio obtido de forma lícita.

Inicialmente, deve-se esclarecer que nos casos de mescla, o objeto material do delito de lavagem será o bem, direito ou valor, mas somente na proporção em que ele tem procedência delitiva. Isso evita os problemas em que esta proporção seja ínfima, pois se tratará, simplesmente, de casos em que o objeto material do delito será só uma parte menor ou ínfima do bem sobre o qual recaia a operação de lavagem.

Assim, como afirma Palma Herrera, basta que um só real (antes na Espanha peseta e agora euro) de procedência delitiva para entender realizado o tipo penal, ainda que somente uma ínfima parte desse bem seja de origem delitiva, o bem nessa ínfima parte poderá ser objeto material de lavagem de dinheiro.

Portanto, nem a mescla de uma mínima proporção de um bem de procedência delitiva com uma grande proporção de procedência lícita descontamina o bem de procedência delitiva, que mantém seu caráter na proporção pertinente do novo bem resultante da mescla, nem o contrário, é dizer, proporção maior de procedência delitiva e mínima de procedência lícita, contamina a esta última. O bem será objeto material da lavagem de dinheiro na proporção que proceda ou tenha sua origem num delito prévio.

A mescla pode ocorrer, por exemplo, no caso se investimento de capital ilícito em empresas ou negócios regulares ou do uso na atividade empresarial do dinheiro poupado mediante a sonegação de impostos. Por isso, uma parte da doutrina sustenta que sempre que seja possível identificar a proporção dos bens ilícitos introduzidos no negócio lícito, o confisco deveria restringir-se exclusivamente aos valores de origem ilícita (teoria da contaminação parcial).

A teoria da contaminação parcial indica que o bem mesclado só procede de um delito prévio na parte em que foi financiado por bens procedentes do delito ou seus substitutivos. Nesse sentido, somente poderia ser bem apto para a lavagem de capitais a parte de origem ilegal e não o resto.

De outro lado, há a teoria da contaminação total, isto é, todo o patrimônio do lavador ficaria contaminado pela mescla de bens de origem delitivo. De acordo com essa teoria, o bem que foi obtido com uma parte de origem delitiva deriva totalmente do delito. Portanto, cada parte do bem contaminado procede do delito produzido e tudo sub-rogado que lhe substitui. Desta maneira, quando a mescla de dinheiro se produz numa conta bancária, esta resultaria "envenenada" em sua totalidade. Esta postura tem como vantagem que a economia probatória, pois é suficiente a demonstração que uma parte dos bens são de origem delitiva para considerar a totalidade como procedentes de um delito, portanto, aptos para a lavagem; é suficiente provar que um bem mesclado tem sua origem num delito, com independência da quantia ilícita.

Como já escrevemos anteriormente, Oliveira sustenta que o princípio da contaminação total implica numa grave inversão do ônus da prova em prejuízo do acusado, a quem incumbiria provar a origem lícita de seu capital. Por isso, a solução mais adequada para estes casos é o confisco parcial (contaminação parcial); a solução da contaminação total somente estaria justificada quando a mescla de capitais foi precisamente a estratégia empregada pelo lavador para dissimular a origem ilícita.

Diante dessas breves considerações, entendemos que o bloqueio de bens do suposto lavador merece cuidado especial para que não se tenha uma decisão injusta no sentido de inviabilizar sua subsistência ou a continuidade de seu negócio, principalmente, quando não há certeza de que todos os valores são de procedência delitiva.

Observamos, ainda, que já há um dispositivo na lei antilavagem que inverte o ônus da prova no sentido de que deve o investigado provar a procedência lícita dos bens. Portanto, desde que ele faça a prova de que parte do seu patrimônio era anterior à comissão do delito de lavagem, os bens devem ser descontaminados e liberados. Essa parece ser a solução justa, impedindo-se que ocorra a contaminação total dos bens do sujeito investigado pelo delito de lavagem.

(*) André Callegari é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor nos cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) do IDP/Brasília.

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