Memórias de uma professora primária
Na construção da nossa história de vida, muitas são as participantes: mães, avós, tias, filhas, amigas, irmãs, colegas e professoras. Mulheres que trazem em suas bagagens uma trajetória de vida, de luta. Mulheres que nos antecederam e enfrentaram os espaços de poder predominantemente masculinos, abrindo caminhos, rompendo estereótipos, para que nós pudéssemos existir, reconhecer nossas identidades e ocupar esses lugares. Neste tempo, fazemos o caminho de volta, buscamos nas fontes históricas os itinerários das histórias de vida dessas mulheres. Voltamos no tempo e resgatamos os percursos que elas atravessaram para que possamos compreender o presente.
Quando ingresso na máquina do tempo e viajo ao passado, recupero as narrativas e contribuições das mulheres que acompanharam minha trajetória de vida. Todas essas mulheres com histórias que ainda não foram contadas, mas que estão inscritas na alma da minha formação. Concordo com a professora Beatriz Daudt Fischer que “recordar significa voltar ao coração”. Muitas vezes, perco um grande tempo nos “becos das minhas memórias” quando sinto a intensidade afetiva dos aprendizados que tive com mulheres que atravessaram o meu caminho. É um movimento de regressar, recuperar as trajetórias de luta das que nos antecederam e usar a força do discurso escrito para fazer ecoar em diferentes extensões. Por essa rota, a experiência de escrever o trabalho de conclusão de curso tornou concreto o desejo de fazer desse exercício de escrita acadêmica o caminho para tracejar a interlocução sobre nós mesmas. Esse sentimento que me abraça está (com)partilhado, no poema da professora Graça Graúna, que diz: “ao escrever, dou conta da ancestralidade, do caminho de volta, do meu lugar no mundo”. Usar as palavras para registrar as trajetórias dessas mulheres é mostrar um itinerário que me fez chegar até aqui.
A história de vida de uma mulher carrega em si muitas vozes. Vozes que se tentou apagar. Mas uma voz, um testemunho de vida, pode recuperar os acontecimentos de uma época.
Estudar e escutar as vozes que foram silenciadas e marginalizadas é um movimento que a Educação Matemática vem fazendo por meio das metodologias da História Oral e da História de Vida. Isso oportuniza a valorização da historicidade das(dos) professoras(es) que ainda não têm sua narrativa na literatura. Mergulhar no passado e trazer à superfície as trajetórias das professoras primárias é uma forma de recuperar a história de vida dessas mulheres e “espraiar” em muitas direções.
Partindo desse panorama de querenças e compromissos, recuperei no meu coração os aprendizados que tive com a professora Evangelina Veiga que, para mim, foi a primeira referência política que atuava no fronte da luta de classes. Quando eu era criança, no ano de 1992, conheci a Evangelina. Ela estava findando a sua carreira como professora acadêmica na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. Evangelina me fascinava, pois, como afirmou Ilois Oliveira de Souza, meu pai e amigo de Evangelina há décadas, ela tinha uma postura revolucionária, uma humildade em saber ouvir e um gosto por estar entre os jovens.
Aprendi com Evangelina, aos meus seis anos de idade, o conceito matemático da proporcionalidade por meio da concepção da “mais-valia”. Isso aconteceu quando eu acompanhava meu pai nas reuniões que ocorriam na Associação Cultural José Martí. Mais uma vez, recorro às palavras da professora Beatriz Daudt Fischer para dizer que escolhi pesquisar sobre a Evangelina, pois “acredito, profundamente, na importância e força dessa mulher na ordem das coisas, na vida e na escola” e tenho a convicção de que essa força assume maior intensidade na medida em que esta mulher/professora “enxerga-se reconhecida e legitimada em seus múltiplos papéis na sociedade”.
Resgatar a história da Evangelina Veiga é tornar visível a narrativa de uma professora primária engajada na aprendizagem matemática e na formação das(os) estudantes. Nessa direção, durante a pandemia, realizei duas entrevistas com a Evangelina e procurei investigar quais foram as contribuições, práticas pedagógicas e os saberes matemáticos produzidos por ela no período em que ela atuava na escola primária. O testemunho dela foi um mergulho no passado e trouxe à superfície do diálogo as suas memórias sobre o ensino de frações.
Aprender frações era um dos objetivos de aprendizagem do quinto ano primário, pois o exame de admissão trazia muitas questões acerca deste conteúdo. Evangelina era inventiva e, talvez com a influência dos movimentos escolanovista e da matemática moderna, elaborou uma estratégia para o ensino das frações.
Com pedaços de papelão das caixas de sapato, ela criou um material pedagógico para que as(os) estudantes enxergassem de maneira concreta a noção de parte e todo. Os recursos eram poucos, o salário era diminuto, a professora primária era desvalorizada, mas, ainda assim, o compromisso com as aprendizagens era grande, imenso. Era essa “norma” profissional que mobilizava a Evangelina.
Vasculhando o percurso da Evangelina, podemos perceber que há semelhanças com as histórias de muitas outras mulheres e, em especial, das professoras primárias que produziram elementos para a aprendizagem da Matemática. Compartilho do pensamento do Wagner Rodrigues Valente de que “salta aos olhos na leitura, nas diferentes trajetórias, o papel das educadoras matemáticas na conformação do próprio campo da Educação Matemática no Brasil”. Fazer esse caminho de volta para conhecer histórias das professoras primárias leva a perceber que essas mulheres, no seu tempo, conceberam muitas práticas matemáticas relevantes para a formação estudantil.
A intencionalidade, ao trazer a história da professora Evangelina, ampara-se na exigência de homenagear uma mulher inspiradora, produtora de discursos discordantes, os quais conspiravam para além do seu tempo, sobretudo, assentada na vontade de trazer a público a narrativa de uma professora primária que é fonte histórica e de estudos para a Educação Matemática.
(*) Maria Gabriela Pires de Souza é graduanda em Matemática – Licenciatura pela UFRGS. Desenvolveu o trabalho de conclusão de curso sob orientação de Elisabete Búrigo.