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Meu nome agora (não) é Zé Pequeno

Por Thiago Martins Rodrigues (*) | 20/11/2023 13:30

A lógica racista sobre a qual a sociedade brasileira foi construída impôs aos homens negros um lugar de violência e exclusão. Dessa forma, sua inserção nos diferentes âmbitos da vida social é permeada por uma complexa trama que envolve desumanização, fetichização, marginalização e inconsciência daquilo que os atravessa como sujeitos.

Foram as mulheres negras as primeiras a denunciar o efeito combinado do racismo, do sexismo e da exploração capitalista, como aponta Angela Davis, e a evidenciar o lugar ambivalente que os homens negros ocupam, como bode expiatório, eleito pela branquitude, das consequências sociais que o racismo e a desigualdade deixam e, ao mesmo tempo, como atores das assimetrias de gênero.

A possibilidade de dar-se conta desses meandros não está acessível a todos. No meu caso, foi na universidade — por um caminho individual, e não pelo currículo do curso — que tomei contato com o pensamento de intelectuais negras e negros do país que examinaram em profundidade a formação da nacionalidade brasileira fundada pelo racismo.

Ler e estudar a produção teórica de autoria negra, para além do interesse acadêmico, colocou em perspectiva minha própria constituição como homem negro. Por essa via, teve início também meu contato com a literatura negro-brasileira. Não se tratava, desse modo, apenas de um objeto de estudo, mas de ver-se como negro e compreender os sentidos de existir como tal no Brasil, no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, na Restinga, na UFRGS.

A obra que deu corpo a essa reflexão foi Cidade de Deus, de Paulo Lins. Ao ler o romance do autor carioca, minha primeira impressão foi de estranhamento. Um livro de grande envergadura e com uma arguta elaboração estética, ambientado em uma favela carioca e com grande destaque para a violência, escrito por um homem negro que sai da própria comunidade em que se passa a narrativa e chega aos bancos universitários.

Os dados que originaram a composição foram obtidos com base em estudo etnográfico do qual Lins participou como objeto e como pesquisador. Diante dessas nuances, originou-se uma obra de tensão e com diferentes entradas para o leitor, especializado ou não.

A repercussão de Cidade de Deus, como se sabe, foi significativa: chegou a outros países, a partir de várias traduções, e aos cinemas, com a celebrada adaptação de 2002. A consequência dessa circulação, a meu ver, consagrou um determinado lugar para Paulo Lins e sua obra. Especialmente o filme dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund estabeleceu alguns parâmetros para a recepção do livro.

 Um deles diz respeito à construção do emblemático personagem Zé Pequeno, que se trata de um odioso produto da desigualdade, do racismo, da violência e da completa ausência do Estado está evidente. É o resultado do projeto de nacionalidade excludente das classes dominantes. Há um substrato que tenta dar contexto à gana de poder que depois vai tomar conta do mais sanguinário dos chefes do conjunto habitacional.

Zé Pequeno, nesse caso, tem marcado um ímpeto de vingança. Uma vingança social. A possibilidade de adquirir bens de consumo e a conquista do poder não fez, todavia, que o personagem fosse inserido efetivamente em práticas sociais outras, que não estivessem ligadas à gestão violenta das dinâmicas da comunidade.

O narrador do romance assume, então, uma postura de repulsa em relação ao bicho-solto, que condensa a consciência histórica de um impasse: o fim de Cidade de Deus é agônico e aponta para um projeto nacional que não encontra possibilidades de superação. A morte de Zé Pequeno e a sua substituição por um novo grupo dá conta de um ciclo que se repetirá diante do que os ricos impuseram à população negra e pobre.

Na adaptação para o cinema, o personagem ganha outros contornos, acredito. A interpretação poderosa de Leandro Firmino foi conduzida para construir um personagem que, apesar de sanguinário e impetuoso, é risível. Isso não serve para humanizá-lo ou apaziguar sua crueldade. Com isso, não estou tentando sugerir que Zé Pequeno seja menos infame. No entanto, os traços, as ações, as escolhas dão conta de um homem que age à toa.

Como resultado, Zé Pequeno fica fixado não como o produto do racismo e da desigualdade que é, mas como uma figura grotesca. Sua permanência no rol de personagens marcantes do cinema nacional atravessa as décadas sem que, no entanto, se pese a imagem de homem negro que circula a partir daí. Que outro homem negro figura nesse grupo, com a mesma intensidade, capaz de fazer um contraponto a Zé Pequeno? Ainda é preciso verificar.

O filme fixou uma imagem de Zé Pequeno que ainda não se desfez, apesar dos avanços que tivemos desde 2002 em relação à figura da personagem negra nas artes em geral. Essa imagem ainda é a do homem negro que – nem herói, nem vilão – é apenas motivo de riso. Para a formação intelectual de homens negros que, como eu, tomam contato com uma série de atravessamentos quando chegam à universidade, lidar com marcas como essa gera mais um lugar de dúvida.

Se pensamos de maneira um pouco mais complexa, não somos Zé Pequeno e ao mesmo tempo somos, porque essa imagem, do homem negro risível, nos acompanha a todo tempo. E essas narrativas seguem produzindo configurações acerca do que é ser homem e do que é ser homem negro.

(*) Thiago Martins Rodrigues é doutorando em Letras da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), membro da Comissão de Apoio e Acompanhamento de Ações Afirmativas do PPG Letras e professor da educação básica.

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