Mudanças climáticas, pandemia e saúde: para onde vamos?
A crise climática acelera. O fenômeno que vem causando a perda irreparável da biodiversidade, agrava a escassez da água, derrete geleiras e torna mais severos o calor, o frio e as tempestades. Aos colapsos ambientais, somou-se a pandemia do novo coronavírus. Com surpreendentes ondas letais, a Covid-19 mudou profundamente nossas rotinas e estabeleceu novos hábitos sociais e higiênicos, criando um marco histórico na longa jornada da humanidade. E todos somos testemunhas dessa era incomum.
Alinhada com a tecnologia, a ciência busca soluções urgentes para enfrentarmos as consequências dos desequilíbrios do clima e da saúde. Realidade distante no início deste século 21, hoje carros elétricos circulam por cidades mundo afora. Parques eólicos de pequenas dimensões e painéis de energia solar se popularizam em povoados isolados. Países comprometidos em diminuir suas emissões de gases de efeito estufa, como Inglaterra, Alemanha e Noruega, já anunciaram o banimento de veículos poluentes ainda nesta década. Em outra ponta, a inadiável vacinação contra a Covid-19 fez os laboratórios acelerarem o desenvolvimento de um imunizante sintético – a vacina de RNA, que pode ser uma arma potente contra epidemias e pandemias futuras.
Estamos aprendendo, ainda que bastante lentos, que vivemos em um sistema ambiental interconectado. Uma alteração climática na Amazônia, no Ártico, em qualquer ponto do planeta, terá reflexos em algum lugar. Já se sabe que o aquecimento global contribui para a expansão geográfica de doenças, como malária e dengue, pois os mosquitos que as transmitem se deslocam para novos territórios mais quentes. As mesmas ondas de calor que destroem plantações e secam fontes de água, geram multidões de refugiados. Os gases que elevam a temperatura da Terra, como o gás carbônico e o metano, também poluem o ar e causam danos espantosos à saúde.
Originada principalmente da queima de combustíveis fósseis, a poluição do ar mata 7 milhões de pessoas no mundo a cada ano. Desses óbitos, 2,8 milhões ocorrem devido à poluição interna, em ambientes domésticos. Ainda hoje, quase metade da população global cozinha e aquece suas casas com combustíveis sólidos como madeira, esterco, resíduos agrícolas ou carvão.
A poluição originada de matas carbonizadas é outro golpe duro na saúde. A tarde de 19 de agosto de 2019, uma segunda-feira, ganhou as redes sociais quando o céu de São Paulo escureceu com as nuvens de fuligem vindas desde a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado. Na época, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) alertava sobre o desmatamento em alta naqueles biomas. Em 2020, segundo o Inpe, o País registrou 223 mil focos de fogo, ante 197 mil em 2019 – o que já era preocupante, piorou.
Um estudo da Universidade de São Paulo (USP), liderado por Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da instituição, comprova que as queimadas na região amazônica têm relação com o aumento da poluição nas grandes cidades do Sudeste. Suspensas na atmosfera, as cinzas da floresta viajam para longe, levando partículas até os pulmões de quem vive a milhares de quilômetros da Amazônia.
No ano passado, porém, o planeta ensaiou um breve respiro. Carlos Nobre, renomado cientista no estudo das mudanças climáticas globais, me conta que nos meses críticos da pandemia, em 2020, a redução mundial dos gases de efeito estufa situou-se entre 2% e 8% devido à queda acentuada de seu uso nos meios de transporte. Na contramão, as emissões brasileiras aumentaram entre 5% e 10% em relação a 2019. A razão? As queimadas por aqui não deram trégua.
No ápice da Covid-19, enquanto a ordem era o isolamento social, os criminosos ambientais estavam “passando a boiada” em áreas florestais. Pesquisa da OMS associa o desmatamento e a fragmentação de matas nativas com doenças infecciosas emergentes. Um exemplo é o ebola, na África, epidemia causada pela proximidade entre humanos e primatas selvagens portadores do vírus.
Em 2003, a Sars, surgida na China, foi descrita como a primeira epidemia grave do século 21. Segundo a revista médica britânica The Lancet, uma lição ensinada pela Sars é que doenças infecciosas recentes podem ter ligações com a crise de extinção da biodiversidade – cerca de 1 milhão de espécies estão em risco de desaparecer. Três espécies apontadas como hospedeiras da Sars, o civeta (Paguma larvata), o cão-guaxinim (Nyctereutes procyonoides) e o texugo-furão chinês (Melogale moschata), estão entre os animais vendidos pelos traficantes chineses da vida selvagem.
A abertura de estradas em meio a florestas é uma via perigosa para a introdução e disseminação de patógenos. Junto com as rodovias, chegam o tráfico de animais silvestres, madeireiros, garimpeiros e grileiros. Com eles, vêm a derrubada de matas, os pastos, os produtos químicos usados no solo e a poluição das águas.
Em março de 2020, os Yanomami denunciaram a presença ilegal de 20 mil garimpeiros em seu território. Uma quantidade assustadora: a Terra Indígena Yanomami abriga 27 mil membros dos povos Yanomami e Ye'kwana. Na época, ouvi do líder e xamã Davi Kopenawa que na reserva Yanomami já havia quatro rios poluídos pelo mercúrio do garimpo – um veneno que contamina os peixes, principal alimento dos índios locais. Também havia relatos de garimpeiros portadores da Covid-19 e do HIV em suas terras. O impacto das doenças levadas às aldeias pelos forasteiros implica em danos irreversíveis ao patrimônio cultural dos povos indígenas.
“A humanidade ainda não entendeu o quanto a natureza preservada é vital para manter nossa saúde em ordem”, diz Kopenawa. Ele está certo. Saúde não é estar livre de doenças. É um estado amplo, em que o meio ambiente, o bem-estar físico, mental e social estão em equilíbrio.
(*) Sergio Tulio Caldas é jornalista, escritor, diretor de TV e roteirista.