Não é uma final de campeonato
Onipotente, o senso comum proclama que “gosto, futebol e política não se discutem”. Acostumadas que estão às falsas equivalências, reiteradas por setores da “grande” mídia, parte das pessoas tende a acatar o rifão como se fosse máxima filosófica. Talvez você se pergunte qual o problema em proceder dessa forma. Tento responder.
Diria que essa conduta implica duas cláusulas: (1) ela tende a nivelar rasteiramente critérios de cunho pessoal (definição de bom/mau gosto; torcida por determinado time de futebol) com decisões que, tomadas individualmente ou não, podem definir o futuro não só do eleitor, mas da cidade, do Estado e da Nação. (2) Ao rebaixar a política ao âmbito da querela pessoal, o palpiteiro converte debate em bate-boca; e, mais grave, passa a enxergar o vizinho, a prestadora de serviços, o jornalista, a freguesa, o motorista de aplicativo, o açougueiro, a professora, o estudante, a artista, ora como aliados (circunstanciais), ora como oponentes (quase eternos).
Nesse sentido, a primeira providência seria reconhecer que equiparar gosto(s) ou futebol à política é uma fórmula apaziguadora que pretende, dentre outras coisas, evitar que se apontem equívocos, criem vibes desagradáveis ou se denunciem arbitrariedades – por mais respaldadas e evidentes que elas sejam.
A negação ostensiva da existência de dados, testemunhos, registros em canais de vídeo ou documentos comprobatórios pode sugerir que, para uma parte expressiva do eleitorado, política e politicagem seriam termos equivalentes. Talvez repouse aí a premissa de que “todos” os candidatos “seriam iguais” e a “conclusão” resignada de que “tanto faz” e “nada muda”.
Isso talvez explique, em parte, a elevada proporção de não eleitores, num momento tão decisivo como este. Como justificar a abstenção? Preguiça? Desinteresse? Descrença? Apatia? Postura enviesada de quem confundiu dogma com verdade e desistência com neutralidade? Ou adesão hipócrita a pautas reacionárias e excludentes, como se elas implicassem, de fato, a moralização dos costumes? Os dados estão à mostra. Basta examinar as aberrações inventadas pela máquina do ódio, disseminadas imediatamente e sem cessar nas redes sociais e grupos de mensagem.
Um mandatário que utiliza o aparato público em conluio com a bancada da bala e pseudomissionários, para benefício próprio ou, no máximo, de sua legenda partidária, age de modo torpe e egoísta (sob a complacência e o preconceito daqueles que nunca frequentaram os espaços que demonizam). Nada mais compatível com uma personalidade narcísica (senão megalomaníaca) e MITÔmana.
Seja qual for o diagnóstico, sequestrar as verbas de escolas, institutos e universidades federais é crime de responsabilidade. É motivo para que todos que defendemos a democracia saiamos às ruas, estendamos as mãos uns aos outros e pressionemos as instituições para que se posicionem vigorosamente em defesa da democracia.
Causa estranheza o silêncio de algumas entidades; de jornais que se autodefinem como veículos com maior credibilidade; de personalidades que disputam protagonismo nas mídias; de incertos representantes da sociedade civil… Afinal, não estamos diante de um ato isolado e pontual, mas de uma decisão nefasta, implementada tiranicamente.
Não se trata de uma disputa entre torcidas de futebol nas arquibancadas; mas de aprimorarmos nosso senso de solidariedade contra os golpistas. Não confundamos a espetacularização de bravatas com atos de civismo. Estamos a testemunhar ações deletérias, forradas de capricho e ódio cego, vociferadas por um punhado de sujeitos sem qualquer projeto para o povo, o Estado ou o País.
Quanto mais tempo esses seres ocuparem o poder, sem sofrer sanções à altura das atrocidades que cometem e asneiras que disseminam, mais se fortalecerá o kit desfaçatez, hipocrisia e virulência. Não se trata de nos vitimizarmos (o que seria legítimo), mas de constatar macros e microviolências diárias que afetam a sociedade em geral.
O sequestro de verbas que inviabilizam o funcionamento dos institutos e universidades federais sugere que estamos a lidar com pessoas extremamente vaidosas (pelo quê?), presunçosas (por quê?) e autoritárias, movidas por inseguranças e ressentimentos, quase sempre projetados nos “inimigos” (a lista é imensa) e aplicados com sadismo às pessoas mais vulneráveis.
Defender a manutenção das verbas que asseguram a dignidade do trabalho, o bem-estar da comunidade acadêmica e o funcionamento adequado das instituições de ensino não é protesto vago, de natureza setorial e dimensão corporativa. A questão é bem outra, gravíssima.
Posicionar-se dessa forma implica resistir aos ataques à coisa pública; reverter os cortes que afetam a ciência, a pesquisa, o ensino, a aprendizagem; mostrar como isso impacta na preparação de jovens e adultos para o mercado de trabalho etc. O âmbito dessa velha nova luta não é individual: estamos condenados a tomar parte dela, em defesa de um outro projeto civilizacional. Ou o (e)leitor realmente acredita que a redução artificial no valor dos combustíveis, a dois meses do pleito eleitoral, seja sinal de saúde econômica e benignidade?
(*) Jean Pierre Chauvin é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
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