O ano do lítio no Brasil – entre desafios sociais e promessas sustentáveis
Neste último artigo de 2023, pensei em fazer um balanço energético simbólico daquilo que pude debater com vocês neste ano em que passei a escrever como articulista deste jornal.
Em meus textos, busquei abordar as pesquisas que tenho desenvolvido ao longo dos últimos anos, especialmente a questão da dependência econômica latino-americana, o colonialismo e a alienação energética, e o extrativismo ligado ao petróleo e ao lítio.
Ou seja, um enfoque no Brasil e na América Latina como exportadores de natureza, o que o nosso grande teórico Carlos Walter Porto Gonçalves (in memoriam), chamou de a “desordem do progresso”.
Consegui contar brevemente a história do lítio no Brasil e como essa narrativa evoluiu ao longo dos anos, especialmente após o Decreto nº 11.120, agora revogado. Na esfera da geopolítica e no cenário de reindustrialização, destaquei os esforços dos Estados Unidos, por meio da Lei de Redução da Inflação (IRA), e da Europa, com a Lei de Matérias-Primas Críticas, para reconfigurar o cenário global, dominado pela China.
Em julho de 2023, destaquei a nova proposta da União Europeia (UE) para as matérias-primas críticas. Em novembro, os países membros deram luz verde aos planos para aumentar o fornecimento de matérias-primas por meio da Lei das Matérias-Primas Críticas, consolidando assim uma estratégia para garantir o abastecimento e a soberania da UE. Soberania, este conceito central e pouco explorado nos debates periféricos.
No contexto das matérias-primas, declarei 2023 como o ano do lítio, isto porque, apesar da queda nos preços devido ao aumento da produção em rocha e salmoura, a corrida pelo lítio continua alta. A demanda por veículos elétricos cresceu, alinhando-se ao cenário da Agência Internacional de Energia para 2030, na qual as chamadas “tecnologias limpas”, desempenharão um papel significativamente maior, o que inclui quase dez vezes mais carros elétricos nas estradas em todo o mundo.
Regionalmente, destaquei o triângulo do lítio (Argentina, Chile e Bolívia) com as maiores reservas, ressaltando a necessidade de autonomia e parcerias regionais para otimizar o uso desses recursos, enquanto os governos, mesmo com um tom nacionalista, mantêm relações dependentes por meio da exportação.
No Brasil, o tema ganhou destaque com o anúncio de novas empresas estrangeiras explorando o lítio em Minas Gerais e no nordeste, ocupando manchetes consecutivas no principal veículo midiático do país. Na promessa de sustentabilidade, nas últimas semanas, a Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei do lítio (PL 2809/2023), que propõe uma certificação voluntária para o “lítio verde”, entendido como aquele que contempla a redução de emissões de carbono em seu processo, utilizando energias renováveis. Em solo português, o lítio ecoou até mesmo na recente renúncia do primeiro-ministro, envolvido em uma polêmica judicial.
No entanto, como destaquei nos meus artigos, a análise social e sociológica muitas vezes é negligenciada nas discussões sobre as matérias-primas críticas e os impactos da mineração em sua forma mais interdisciplinar.
Frequentemente, o enfoque se limita a questões puramente técnicas, o que, por sua vez, pode abrir espaço para uma variedade de opiniões que nem sempre contribuem de maneira aprofundada e crítica. Por outro lado, é essencial para nós, sociólogos, politizar a técnica, pois sem dados não é possível formar uma opinião, e esses dados não surgem do vazio.
O caso trágico de Maceió é um bom indicador da nossa falha em “antecipar” a ruptura sociometabólica, pois ao nos limitarmos ao denuncismo, paralisamos, e perdemos a possibilidade de propor soluções não apenas regionais, mas também, e principalmente nacionais.
Buscando preencher essas lacunas e antecipar problemas do futuro ao introduzir uma abordagem interdisciplinar nas análises, recentemente, junto aos alunos do bacharelado da Faculdade de Saúde Pública da USP e com a supervisora do projeto que desenvolvo, Maria da Penha Vasconcellos, propusemos o desafio de analisar relatórios socioambientais de duas mineradoras relacionados ao lítio no Brasil.
Nossa premissa foi debater o real contributo e a contrapartida social presentes nesses relatórios, que frequentemente reproduzem frases e adjetivos em resposta apenas às demandas do mercado e de seus investidores.
Os resultados preliminares indicam preocupações quanto à acessibilidade dos relatórios para a população impactada pela mineração, bem como à escassez de informações sobre as contrapartidas necessárias e prometidas por esses empreendimentos.
Portanto, se 2023 foi o ano do lítio e do destaque para as matérias-primas críticas, reordenando a geopolítica mundial seja através das baterias ou dos microchips, o que podemos verificar no caso brasileiro é que seguimos sem uma estratégia bem definida e interdisciplinar para esta extensa cadeia, ou melhor, uma estratégia que vá além do simples exportar, exportar e exportar.
(*) Elaine Santos é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.