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O filósofo e a anticiência

Peter Schulz (*) | 18/05/2020 14:02

O que é ciência? O que diferencia o conhecimento científico de outras formas de conhecimento? Como esse conhecimento é produzido? Por quem? Para quê e para quem? Como a ciência se relaciona com a política e a sociedade em geral? Essas perguntas são abordadas com frequência crescente desde que a ciência moderna ainda engatinhava. Debruçam-se sobre elas historiadores, filósofos e sociólogos da ciência, desde Francis Bacon nos séculos XVI e XVII, até os adeptos contemporâneos dos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade. Essas perguntas são talvez mais importantes ainda em tempos de ataques à ciência.

No conjunto atual desse movimento anticiência, a Terra seria plana e não aproximadamente esférica, as vacinas não funcionariam e o design inteligente é que explicaria a origem das espécies em vez da Teoria da Evolução. O contrário é o correto nos três casos, mas há sutis diferenças e é nos detalhes que está o inferno. Além da confiança na ciência, percebemos que a Terra não é plana por observações ao nosso alcance. A convicção em favor das vacinas vem também das histórias pessoais. Pertenço a uma geração que sofreu com enfermidades que nossos filhos não tiveram, graças às vacinas. A origem das espécies, por outro lado, não conta com essa vantagem: não faz parte de nossa experiência pessoal a observação de seleções naturais, mas isso pode ser substituído pelo acesso ao imenso número de evidências científicas para a evolução versus nenhuma pelo criacionismo. Assim, as defesas da teoria da evolução passam pela argumentação de que criacionismo não é ciência, portanto, por exemplo, design inteligente (sua nova roupagem) não deve ser ensinado nas escolas. Concordo novamente, mas preciso jogar gasolina na fogueira, mesmo correndo o risco de que algo do combustível respingue nas minhas roupas, com uma pergunta.

E se um filósofo da ciência sugerir que sim, criacionismo deve ser ensinado nas escolas junto com a teoria da evolução? A sugestão foi feita por Paul Feyerabend (1924-1994), filósofo austríaco, que viveu e trabalhou em muitos lugares, em especial na Universidade de Berkeley nos Estados Unidos. Brilhante, polêmico, controverso e, portanto, linguarudo, é quase impossível ser indiferente a ele. Brigou com praticamente todos os seus colegas e o ponto central das celeumas é sua posição sobre a ciência, escancarando a caixa de Pandora entreaberta por Thomas Kuhn (1922-1996), também filósofo, antes amigo e depois desafeto: Feyerabend desafiou ostensivamente a noção clássica de que ciência seria um empreendimento puramente racional em busca da verdade, afirmando que a empreitada científica é carregada de subjetividade e acordos, misturando nesse caldo a retórica e a propaganda. Não seria muito diferente, nesse sentido, da astrologia, acupuntura e bruxaria. Não passaria, de acordo com suas palavras, de um “conto de fadas”. Como eu adverti: polêmico, controverso e linguarudo. Boa parte de suas ideias estão em um livro, cuja publicação não era cogitada inicialmente, mas virou um clássico em círculos acadêmicos e principalmente fora deles: “Contra o Método” (primeira edição em 1975). A intenção de Feyerabend era, pois, discutir com seu colega Imre Lakatos (1922-1974), para quem enviou sua “colagem” de ideias. Lakatos deveria responder e assim publicariam em colaboração tese e antítese, mas o filósofo húngaro faleceu antes disso e, por fim, Feyerabend resolveu publicar sua parte. A repercussão foi enorme e quase imediata e as reações polarizadas. Primeiro vamos recuperar agumas reações e depois caminhar contra o método, mas no fundo a favor da ciência.

Midiático em aulas e palestras, Feyerabend era, por outro lado, avesso a entrevistas, como relata William Broad em seu artigo na revista Science em 1979. A linha fina do artigo, simpático ao filósofo, evidencia o mantra repetido: “progresso ocorre apenas, ele argumenta, porque cientistas quebram qualquer regra metodológica e adotam o mote ‘vale tudo’”. Entre outras questões, Broad comenta que para Feyerabend, cidadãos devem julgar a ciência de acordo com seus valores, não necessariamente os dos cientistas, finalizando o artigo dizendo que “comparado ao trabalho rígido e sóbrio que frequentemente é feito em filosofia da ciência, seus pontos de vista são uma lufada de ar fresco.”

Um contraponto contundente aparece anos depois na revista Nature em 1987. Os físicos T. Theocharis e M. Psimpoulos caracterizam Feyerabend com a alcunha de “pior inimigo da ciência”. O contexto desse artigo-manifesto é o corte de verbas para pesquisa no Reino Unido nos anos 1980, mencionando o comentário do então secretário de estado para educação e ciência, que é interessante reproduzir:

“Para os cientistas a festa acabou [...] Até há pouco tempo ninguém fez perguntas desconfortáveis [...] Porém, existe uma crescente suspeita em relação a cientistas e suas descobertas [...] E é nesse ambiente drasticamente modificado que a dramática diminuição nos gastos em pesquisa científica no Reino Unido ocorre.”

Não deixa de ser no mínimo curiosa a proposta dos autores do artigo frente a esse ataque à ciência exatamente durante o governo de Margaret Thatcher. Os principais culpados seriam os filósofos da ciência, em especial Feyerabend, classificados como traidores da verdade; cabendo aos cientistas “reafirmar a preeminência dos conceitos de objetividade e verdade”.

Não seriam exatamente reações confusas como essa dos físicos ingleses (contra os ataques à ciência de natureza bem mais complexa) que Feyerabend cutucava com sua vara curta, ao dizer que a ciência seria um “conto de fadas’? Minhas simpatias pelo filósofo austríaco me levam a não o interpretar como um devoto da astrologia ou do criacionismo no lugar da ciência, mas sim um crítico de como a ciência muitas vezes se apresenta ao público: racional, objetiva, verdadeira, neutra e sem falhas. E, implicitamente, alertando sobre as possíveis consequências dessa apresentação castiça. Para ilustrar esse ponto de vista no contexto dos dias atuais, concentro-me no último capítulo da “colagem” de Feyerabend, “Contra o método”, cujo subtítulo é “esboço de uma teoria anárquica da teoria do conhecimento”, fazendo justamente uma colagem de citações diretas, ou seja: não estou sendo nem objetivo, nem neutro e, certamente, cheio de falhas.

O primeiro parágrafo do capítulo reafirma o que foi esmiuçado nos capítulos anteriores: “a ideia de que a ciência pode e deve ser elaborada com obediência a regras fixas e universais é, ao mesmo tempo, quimérica e perniciosa”. A quimera é pela visão simplista e o pernicioso viria da valorização da qualificação profissional em detrimento da humanidade do cientista. Feyerabend ainda acrescenta um “prejudicial à ciência”, pois tal ideia simplista “leva a ignorar as complexas condições físicas e históricas que exercem influência sobre a evolução científica”. Logo em seguida ele retoma o lema de que “todas as metodologias têm limitações e só a ‘regra’ do ‘tudo vale’ é capaz de manter-se.” As aspas internas são dele e a frase simplesmente pode querer dizer que a ciência é mais complexa do que a breve definição de método científico que é repetida para o público e que não sei se ‘vale tudo’, mas confesso que já valeu muita coisa na construção da ciência. Os muitas vezes tortuosos caminhos que levam à conclusão de uma pesquisa nunca são descritos nos nossos artigos científicos. E isso é sim prejudicial e Feyerabend continua cutucando dizendo que, “além disso, os cientistas só muito raramente resolvem os problemas, cometem erros numerosos e oferecem, frequentemente, soluções impraticáveis.” De fato, só publicamos artigos científicos com nossas novidades, mas vão se avolumando as manifestações para que artigos com resultados negativos, reprodução de resultados anteriores ou descrição de becos sem saída sejam incentivados. Pelo bem da ciência e até aqui tudo bem.

Feyerabend critica a perda do papel do conhecimento tradicional nas sociedades contemporâneas, perda que teria sido provocada pela ciência. Segundo ele, esses conhecimentos tradicionais deveriam ser mais respeitados, pois fazem parte da cultura e história dessas sociedades e sua perda de relevância pode ter efeitos inesperados, que na maior parte das veze ficam apenas latentes. Com a sua verve, Feyerabend declara que “cabe aos cidadãos da sociedade livre aceitar o chauvinismo da ciência sem contradizê-la ou subjugá-la pela força oposta da ação geral”. E o que seriam ações gerais, que eu chamei de efeitos inesperados? Feyerabend: “Ação geral foi utilizada contra a ciência pelos comunistas chineses na década de 1950 e voltou a ser usada, em circunstâncias muito diversas, por algumas pessoas que se opunham à Teoria da Evolução, na Califórnia da década de 1970.” O que propõe Feyerabend então? “A separação entre o Estado e a Igreja há de ser complementada por uma separação entre o Estado e a Ciência”. Teoria da Evolução e criacionismo deveriam ser ensinadas conjuntamente: “um cidadão amadurecido não é um homem que foi instruído em uma especial ideologia; um cidadão amadurecido é uma pessoa que aprendeu a tomar decisões.” Como resultado, “a decisão que tome em prol da ciência – admitindo que a tome - será muito mais racional do que é, hoje, qualquer decisão em favor da ciência.” Fácil torcer o nariz, mas qual é o subtexto? Temos que reconhecer que a educação pela ciência que fazemos é frágil, especialmente diante de ações gerais.

Feyerabend era um anarquista utópico e não imaginou que seria possível a separação entre Estado e Ciência, junto com “ações gerais” daquele contra esta, e o retorno da  união entre Estado e Igreja, produzindo seus “neocontos de fada” distópicos (e não quiméricos) e mais perniciosos e prejudiciais. Gostemos ou não, o maior encrenqueiro da Filosofia da Ciência tinha o que dizer.

(*) Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp em Limeira.

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